A depressão, historicamente associada predominantemente à fase adulta, revela-se um desafio clínico cada vez mais reconhecido na infância e na adolescência. Longe de ser uma simples “fase” ou “birra”, o sofrimento depressivo em crianças e jovens assume roupagens específicas, muitas vezes disfarçadas, que exigem um olhar e uma escuta psicanalítica profundamente sensíveis e contextualizadas.
Neste aprofundamento, vamos explorar essas abordagens, com o pano de fundo da obra “Black Dawn” (Amanhecer Negro) de Brian Charley (1991). Parte de uma série de autorretratos criada durante o agravamento da esquizofrenia do artista, esta pintura enigmática, com suas imagens fragmentadas e simbólicas, é um testamento íntimo da luta interna e da depressão psicótica. Ela nos convida a adentrar a complexidade da psique jovem, onde a dor sem nome pode ser um portal para o potencial, mas também um abismo de desespero se não for reconhecida e acolhida.
O Resgate Histórico da Depressão e os Desafios Contemporâneos
A compreensão da depressão como uma condição clínica não é linear. Desde o século XIX, figuras como Sigmund Freud já deslocavam a dor da dimensão puramente física para a dimensão psíquica da perda e dos afetos reprimidos. Para Freud, o sofrimento neurótico e melancólico estava intrinsecamente ligado a conflitos inconscientes e ao manejo das perdas simbólicas.
A era da industrialização (final do século XIX e início do século XX) trouxe consigo tensões coletivas: o trabalho mecânico, a vida urbana em crescimento desordenado e a alienação do processo produtivo geraram um mal-estar psíquico generalizado. O corpo social adoecia junto ao corpo individual.
No século XXI, os desafios se intensificam. Vivemos em um mundo de fragmentação e liquidez, como apontado por teóricos como Zygmunt Bauman (“modernidade líquida”) e, de forma complementar, pela “sociedade do cansaço” de Byung-Chul Han, que destaca a exaustão por excesso de desempenho e produtividade. As “ideias totalizantes” do passado desmancharam-se no ar, como na célebre frase de Marx. A busca por sentido torna-se um imperativo, e a farmacologia, a psicanálise e diversas terapias buscam dar conta de uma dor que é multifacetada e global.
Os anos 1980 e 1990 viram a padronização diagnóstica (com o surgimento e aprimoramento de manuais como o DSM), o que trouxe maior clareza, mas também um alerta: a medicalização excessiva corria o risco de silenciar a escuta singular. O desafio atual é, portanto, buscar um cuidado integral que articule o diálogo entre a ciência (farmacologia, neurociência), a subjetividade (psicanálise, psicoterapia) e a justiça social (políticas públicas, acesso equitativo).
Os Disfarces da Depressão em Crianças e Adolescentes: Um Chamado à Escuta Singular
Tanto na infância quanto na adolescência, a depressão raramente se apresenta com a tristeza aparente do adulto. Ela se esconde atrás de condutas e disfarces que exigem um olhar, um ouvido e uma sensibilidade clínica aguçados:
- Irritabilidade e explosões de raiva: Em vez de tristeza, a criança ou adolescente pode manifestar um temperamento explosivo, dificuldade em lidar com frustrações e acessos de raiva desproporcionais à situação.
- Isolamento social: Afastamento de amigos e atividades que antes eram prazerosas, preferência por ficar sozinho, dificuldade em se engajar em interações.
- Distúrbios somáticos: Dores de cabeça frequentes, dores de barriga, náuseas, fadiga crônica sem causa orgânica, insônia ou hipersonia. O corpo fala o que não pode ser dito.
- Dificuldades escolares: Queda no rendimento, desinteresse, absenteísmo, problemas de concentração e memória. A escola, antes um espaço de desenvolvimento, torna-se um fardo.
- Mudanças no apetite: Perda ou aumento significativo de peso.
- Comportamentos de risco: Na adolescência, isso pode incluir uso de substâncias, automutilação (cortes, queimaduras), impulsividade, promiscuidade, comportamentos autodestrutivos.
- Sentimentos de inutilidade e culpa: Mesmo sem uma perda aparente, a criança pode sentir-se “ruim”, “um estorvo”, ou culpar-se por problemas familiares.
A escuta psicanalítica é, nesse contexto, um instrumental indispensável. Ela é capaz de acolher o sofrimento que, muitas vezes, não é percebido ou nomeado pelos pais e educadores, desvendando as formas disfarçadas do sintoma que pedem tradução. A sociedade precisa estar atenta a esses sinais, pois eles são a expressão de uma dor que, se não for cuidada, pode se aprofundar.
Elementos Chave na Abordagem do Sofrimento Jovem:
- Expressão do Sofrimento pelo Corpo e Comportamento: É a forma mais nítida de manifestação em idades precoces. O corpo e o comportamento funcionam como um idioma primário para afetos não simbolizados.
- Papel das Relações Parentais e Cuidadores: As relações parentais e dos primeiros cuidadores “suficientemente boas” (conceito winnicottiano) são cruciais. Elas oferecem um ambiente de holding (sustentação) que permite à criança desenvolver a capacidade de simbolizar e lidar com as frustrações, evitando que gestos silenciosos se enraízem como dor. A replicação de padrões parentais disfuncionais (“assim como fizeram comigo, eu faço com os outros”) é uma armadilha a ser evitada.
- Necessidade de Tempo e Linguagem Simbólica: Resgatar o eu fragilizado exige tempo e a criação de uma linguagem simbólica. Para a criança, isso se dá através do brincar; para o adolescente, pela fala, pela arte, pela escrita.
A Arte da Escuta Clínica: Adaptando-se ao Tecido Vivo da Vida
A depressão muda de forma ao longo da vida, e a arte da escuta clínica precisa reconhecer esses disfarces em cada etapa. Do corpo agitado da criança (que pode ser uma forma de agitação depressiva) ao silêncio do idoso, cada expressão é um pedido de ajuda.
A técnica psicanalítica se adapta ao tecido vivo da existência:
- Brincar com a criança: O jogo simbólico no setting terapêutico permite que a criança elabore fantasias, medos e afetos travados, fortalecendo seu eu e dissolvendo cristalizações dolorosas. A caixa de areia, os bonecos, os desenhos são linguagens.
- Sonhar com o adulto: Através da associação livre e da análise dos sonhos, o adulto pode acessar o inconsciente, desvelar conflitos e ressignificar experiências.
- Escutar memórias com os idosos: A vida adulta e a velhice trazem consigo novas máscaras para antigas feridas (esgotamento, inutilidade, culpa sem objeto claro). A escuta deve ligar passado e presente, oferecendo a oportunidade de reinvestir e ressignificar o desejo.
A psicanálise expande seu alcance para diversos nichos – infância, adolescência, vida adulta, família, grupos em situação de exclusão (LGBT+, vítimas de calamidades). Em cada etapa, o sofrimento abre frestas e novos desafios. A dor que parecia insignificante ou estéril pode se transformar em um portal simbólico para que o sujeito ressignifique seu laço sadio com a vida.
O Campo de Batalha Pulsional e o Cuidado do Invisível
A depressão, conforme a perspectiva de Hugo Braikman, é um campo de batalha entre as pulsões de vida (Eros), que buscam a união e a construção, e as pulsões de morte (Thanatos), que tendem à desintegração e à inércia. Cada etapa da vida dá um colorido singular a essa luta, exigindo uma escuta livre de reduções e padronizações.
O terapeuta/cientista deve cuidar do invisível: aquilo que não se vê no sintoma manifesto, mas que pulsa no inconsciente. Essa capacidade de traduzir o invisível em linguagem simbólica é a potência que vai resgatar o ego debilitado. Para a criança, significa permitir que ela brinque com o que antes a congelava; para o adolescente, dar voz à sua dor sem nome; para o adulto e o idoso, encontrar a razão de antigas feridas que retornam sob novas máscaras. Essa escuta terapêutica liga passado e presente, oferecendo a oportunidade de reinvestir o desejo onde antes havia desistência.
A presença atenta do terapeuta é crucial para decifrar o apelo silencioso. Daí a importância das relações parentais e dos primeiros cuidadores “suficientemente bons”. Uma pedagogia preventiva, baseada no acolhimento precoce, transforma frustrações futuras em caminhos de elaboração, cultivando a capacidade de simbolizar e lidar com as perdas, em vez de investir em “raízes” que geram gestos silenciosos de dor.
A Dor Silenciosa na Cultura: “As Vantagens de Ser Invisível” e a Depressão Sazonal
A literatura e o cinema são veículos poderosos para a compreensão da dor silenciosa. O filme “As Vantagens de Ser Invisível” (The Perks of Being a Wallflower, 2012) é um exemplo tocante da depressão juvenil. Através das cartas do tímido Charlie, o filme expõe a dor silenciosa da depressão juvenil, encoberta por traumas não simbolizados. A “invisibilidade” do protagonista expressa uma dissociação entre sentir e conseguir dizer, um conflito comum na depressão. A obra evidencia que o sintoma não nasce no vazio, mas nas falhas da escuta e do vínculo, mostrando como o ambiente (entre apoio e negligência) molda a dor e a esperança.
A aula também nos trouxe o conceito de Depressão Sazonal (TAS – Transtorno Afetivo Sazonal), um fenômeno que se manifesta com a queda do humor nos meses de menos luz (outono/inverno), acompanhada de sonolência, letargia e desejo por doces.
- Cinema “Luzes de Inverno” (Ingmar Bergman, 1963): A fotografia cinzenta e o ritmo lento reproduzem o embotamento e a angústia associados aos invernos escandinavos, refletindo a atmosfera da TAS.
- Instalação Artística “Weather Project” (Olafur Eliasson, 2003): O sol artificial na Turbine Hall da Tate Modern convidava os visitantes a deitar-se sob uma luz quente, comentando a necessidade fisiológica de luminosidade para o humor e seu impacto na TAS.
- Música Clássica “Concertos para Inverno” (Vivaldi, 1723): O segundo movimento (“Largo”) evoca languidez, enquanto o “Presto” final sugere o súbito alívio dos dias mais claros, capturando a ambivalência da TAS.
O “Mal-Estar Civilizatório” e a Redefinição da Biografia: Rosy-Sweaty Solo Oceans 2025
A psicanálise, em sua visão expandida, não se limita ao ego isolado, mas o insere em um contexto sociopolítico. A questão “Quais discursos sociais insistem em mim enquanto eu escuto o paciente?” convida o analista a uma autorreflexão sobre as influências do meio (ex: a “sociedade do cansaço” de Byung-Chul Han, que valoriza a produtividade excessiva e leva ao burnout). A depressão é, em parte, um reflexo do mal-estar civilizatório que Freud já apontava.
A história de Rosy-Sweaty Solo Oceans 2025 (Ross Savetti) é um exemplo notável de como a disciplina e o propósito podem redesenhar uma biografia marcada pela depressão. Após um colapso em seu escritório em Londres, ela escreveu seu próprio obituário imaginário e percebeu que “nada realizara”. Sem experiência em remar ou consertar equipamentos náuticos, ela se matriculou em cursos e montou o barco “Sedna”. Em 2023, ela se tornou a primeira mulher a remar três oceanos sozinha, culminando na travessia de 103 dias das Canárias a Antígua. Enfrentando ondas de oito metros, rompimento de leme, e usando meditação e cânticos para conter ataques de pânico no “breu oceânico”, Savetti demonstrou uma resiliência extraordinária.
Sua história, assim como a de Ed Izard (27 maratonas em 27 dias), reforça a ideia de que a capacidade de reinvestir o desejo, mesmo após os abismos da depressão, é uma força transformadora. Não se trata de uma cura mágica, mas de um processo de redesenho da biografia através da disciplina, do propósito e do reconhecimento da própria potência, validando que a dor, quando trabalhada, pode abrir caminho para o potencial.
Ao final deste mergulho nos aspectos clínicos e diagnósticos da depressão na infância e adolescência, e nas complexas nuances da técnica psicanalítica, reiteramos que a compreensão profunda do sintoma exige uma sensibilidade ímpar. O psicanalista, com sua escuta terapêutica afinada, tem o papel de depurar o que está às escondidas, de resgatar aquele que se experimenta vitimizado por situações que, sozinho, não consegue superar. Não se trata de memorizar, mas de criar familiaridade com esse repertório, expandindo o horizonte de perspectivas no campo da psicanálise e abrindo caminho para a serenidade e a paz.