Resumo
Este artigo explora o conceito de ansiedade através da lente psicanalítica, traçando um percurso que vai de Freud a Lacan, e examina como a arte, particularmente através da obra “O Grito” de Edvard Munch, pode revelar as dimensões mais profundas deste afeto universal. A ansiedade é apresentada não como um mero distúrbio a ser eliminado, mas como uma experiência subjetiva complexa que revela verdades fundamentais sobre o desejo e a condição humana. O artigo propõe uma compreensão da ansiedade como “voz do calado” – aquilo que não foi transformado em linguagem e se manifesta como sintoma no corpo e na psique.
1. Introdução: Entre o Silêncio e o Grito
Algumas feridas usam o silêncio como sobrenome e o amor como disfarce.” Esta poética definição captura a essência do que a psicanálise compreende como ansiedade – não apenas um estado afetivo perturbador, mas uma mensagem cifrada do inconsciente que pede elaboração e escuta.
No século XXI, vivemos uma verdadeira epidemia de ansiedade. A ansiedade moderna não se trata apenas de excesso de tarefas, mas de angústia de não saber mais o que se deseja, o que se pode desejar. Em uma era de hipertextos, hiperimagens e hipernarrativas, nossa mente sobrecarregada denuncia um inconsciente não escutado, transformando em sintoma aquilo que não consegue ser simbolizado.
2. O Conceito de Ansiedade: Uma Experiência Subjetiva Complexa
2.1 A Natureza da Ansiedade
A ansiedade não é apenas um distúrbio a ser medicado ou eliminado. Trata-se de uma experiência subjetiva complexa que tem raízes em conflitos inconscientes e se reflete na estrutura singular de cada sujeito. Como experiência universal, a ansiedade se caracteriza pela tríade:
- Medo: a antecipação de uma ameaça, real ou imaginária
- Expectativa: a projeção no futuro de possibilidades catastróficas
- Realidade: o confronto com o presente que escapa ao controle
2.2 A Singularidade na Ansiedade
Cada sujeito constrói sua singularidade através de experiências ansiosas. Na ansiedade adulta, ressignificamos nossa individualidade ao nos darmos conta de:
- Desejos que foram reprimidos
- Afetos que não foram recebidos
- Olhares que não foram dados
- O calor humano que nos faltou
3. A Perspectiva Freudiana: Do Orgânico ao Psíquico
3.1 A Ruptura Freudiana
Freud rompe com a ideia de ansiedade como apenas orgânica, introduz a noção de um alarme interno entre pulsões em conflito. Esta revolucionária concepção transformou a compreensão da ansiedade de um mero fenômeno biológico para uma complexa manifestação psíquica.
3.2 As Duas Teorias da Angústia em Freud
Temos duas teorias da angústia em Freud sendo que em uma a repressão geraria a angústia e na outra seria a angústia que geraria a repressão:
- Primeira Teoria (1895): A angústia como resultado da repressão – energia sexual não descarregada que se transforma em sintoma ansioso
- Segunda Teoria (1926): A angústia como sinal – um alarme do ego diante de perigos internos ou externos
A angústia é um sinal que funciona como indicador de algo que ameaça o equilíbrio psíquico do sujeito.
4. A Revolução Lacaniana: A Angústia Como Afeto que Não Engana
4.1 O Conceito Central
Lacan vai nos dizer que a angústia é o afeto que não nos engana. Esta afirmação revolucionária estabelece a angústia como um dos poucos pontos de certeza na experiência humana, paradoxalmente através de sua natureza perturbadora.
4.2 Por Que a Angústia Não Engana?
A angústia é o afeto que, por essência, não é capaz de enganar, pois está presente como marca do real, do que não é possível simbolizar. Várias razões fundamentam esta proposição:
- Escapa ao Simbólico: A angústia escaparia ao simbólico e se ancoraria no real do corpo
- Confronto com o Desejo do Outro: Coloca o sujeito diante da questão fundamental: “Que vuoi?” (O que o Outro quer de mim?)
- Presença do Objeto: A angústia não seria pela perda do objeto, nem pela falta do objeto, mas sim pela presença do objeto
4.3 A Angústia e o Objeto a
Lacan propõe que a ansiedade não é apenas uma resposta a um estímulo externo, mas sim uma manifestação do desejo inconsciente. A angústia surge quando o sujeito se aproxima demais do objeto causa de desejo (objeto a), revelando a verdade insuportável da falta que estrutura o desejo.
5. O Grito de Edvard Munch: A Ansiedade em Imagem
5.1 A Obra Como Espelho da Angústia
“Passeava com dois amigos ao pôr do sol quando o céu ficou de súbito vermelho-sangue. Eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a vedação. Havia sangue e línguas de fogo sobre o azul-escuro do fiorde e sobre a cidade. Os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade e senti o grito infinito da Natureza.” Edvard Munch
Esta descrição do próprio Munch sobre o momento que inspirou “O Grito” revela como a ansiedade pode irromper subitamente, transformando a percepção da realidade.
5.2 Elementos Psicanalíticos na Obra
A pintura de Munch captura visualmente o que a psicanálise descreve teoricamente:
- A Figura Central: Não grita, mas escuta – representando como o ansioso é invadido por algo que vem de fora e de dentro simultaneamente
- As Linhas Sinuosas: A linha diagonal da ponte direciona o olhar do espectador para a boca da figura que se abre num grito perturbador – simbolizando a distorção da realidade pela angústia
- O Ambiente Distorcido: Representa o “universo em colapso” – como a ansiedade transforma nossa percepção do mundo
5.3 A Arte Como Elaboração
“Desde que me lembro por gente, sofri de um profundo sentimento de ansiedade que tentei expressar em minha arte.” – esta confissão de Munch revela como a criação artística pode servir como via de elaboração da angústia, transformando o afeto insuportável em obra cultural.
6. Diferenciando Ansiedade e Depressão: Uma Distinção Crucial
6.1 Características Distintivas
A psicanálise estabelece diferenças fundamentais entre ansiedade e depressão:
ANSIEDADE:
- Ativação psíquica elevada: hipervigilância constante
- Foco temporal no FUTURO: “e se acontecer…”
- Corpo hiperativo: taquicardia, sudorese, tremores
- Pensamentos obsessivos antecipatórios
- Impulso de ação e controle
DEPRESSÃO:
- Hipoativação psíquica: lentidão mental
- Foco temporal no PASSADO: culpas e perdas
- Corpo desligado: fadiga, anedonia
- Pensamentos derrotistas fixos
- Bloqueio da ação, paralisia emocional
6.2 A Complexidade Clínica
A oscilação entre tentativas impulsivas de fuga, ansiedade, e longos períodos de estagnação, depressão, pode ocorrer no mesmo paciente, criando uma apresentação clínica mista.
7. A Escuta Psicanalítica: Transformando Ansiedade em Linguagem
7.1 O Valor da Escuta
A arte de escutar, especialmente para terapeutas, psicanalistas, educadores e profissionais da saúde, vale mais que um remédio. A escuta psicanalítica:
- Ressignifica a experiência ansiosa
- Liberta o sujeito de padrões repetitivos
- Empodera através da compreensão
7.2 O Processo de Elaboração
O objetivo não é eliminar a ansiedade, mas:
- Verbalizá-la: transformar o afeto em palavra
- Compreendê-la: identificar os conflitos subjacentes
- Elaborá-la: criar novos sentidos e possibilidades
A angústia é o afeto por onde passa a “função pura do desejo”, revelando a verdade da falta que estrutura o sujeito.
8. A Ansiedade no Século XXI: Novos Desafios
8.1 A Era da Hiperconectividade
Vivemos em tempos de:
- Excesso de estímulos externos
- Pressões online constantes
- Medo social amplificado
- Novos formatos de angústia digital
8.2 O Sintoma Como Mensagem
O sintoma não é só biológico, é também um pedido de sentido. O corpo reage àquilo que a psique não conseguiu simbolizar, transformando em comportamento o que deveria ser linguagem.
9. Implicações Clínicas e Terapêuticas
9.1 Para a Prática Clínica
A angústia é um afeto norteador da clínica psicanalítica, sem representação e da ordem do real, por isso um afeto que não engana. Ela serve como:
- Bússola para o analista
- Indicador do processo analítico
- Sinal da proximidade com questões fundamentais
9.2 O Manejo Clínico
Para Lacan, o manejo da angústia se configura como um enorme desafio para os analistas, uma vez que é necessário conseguir apreender quanto o analisante pode suportar de angústia.
O trabalho analítico visa:
- Acolher a angústia sem eliminá-la prematuramente
- Facilitar sua transformação em palavra
- Promover a elaboração simbólica
- Construir novos sentidos para a experiência
10. A Potência Transformadora da Ansiedade
10.1 De Fragilidade a Força
A experiência pessoal relatada na aula exemplifica esta transformação: da timidez paralisante na adolescência à capacidade de falar para grandes públicos. A ansiedade, quando elaborada, pode se tornar:
- Fonte de criatividade
- Motor de superação
- Caminho de autoconhecimento
- Potência transformadora
10.2 O Conhecimento Como Cura
Decidir por fazer um curso sobre ansiedade não apenas informa, mas é um momento de acolhimento. O conhecimento:
- Economiza dor e recursos
- Previne crises futuras
- Oferece ferramentas práticas
- Transforma a experiência subjetiva
11. Conclusão: A Voz do Calado
A ansiedade, compreendida pela psicanálise como “a voz do calado”, representa todas aquelas experiências que não puderam ser transformadas em linguagem e se manifestam como sintoma. É a voz:
- Do momento silenciado
- Do afeto não recebido
- Da dor não elaborada
- Do olhar não dado
A angústia é “o indicador infalível da verdade da falta, signo verdadeiro da verdade”. Longe de ser apenas um transtorno a ser medicado, a ansiedade se revela como um portal para o autoconhecimento e a transformação.
Como demonstra a obra de Munch, a ansiedade pode ser transformada em criação, em arte, em vida potencializada. O desafio contemporâneo não é eliminar a ansiedade, mas aprender a escutá-la, compreendê-la e transformá-la em linguagem e sentido.
Em um mundo de hiperconectividade e sobrecarga informacional, resgatar a capacidade de escuta – de si e do outro – torna-se não apenas terapêutico, mas revolucionário. A psicanálise nos convida a ver na ansiedade não um inimigo, mas um mensageiro que traz notícias importantes sobre nosso desejo e nossa verdade mais íntima.
Afinal, como nos ensina Lacan, a angústia é o único afeto que não engana. E é justamente por não enganar que ela pode nos guiar em direção a uma vida mais autêntica e plena de sentido.
Referências Bibliográficas
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