Introdução: Do Divã Individual ao Mal-Estar na Cultura
Após uma jornada pelas profundezas da psique individual – explorando a solidão, a performance, o trauma e o luto –, o curso “Psicanálise e Traição, Autossabotagem” nos convida a um movimento decisivo: erguer o olhar do divã para a vasta e turbulenta paisagem da cultura. Os capítulos treze e catorze nos introduzem ao quarto módulo, onde a traição e a fragilidade dos laços deixam de ser vistas apenas como dramas privados para serem compreendidas como sintomas agudos de uma profunda transformação sócio-simbólica.
Nesta análise, somos guiados por dois diagnósticos complementares e potentes. No capítulo treze, “O Fim do Patriarcado e a Necessidade de Novos Contratos Amorosos”, a perspectiva de Luciano Lutereau nos mostra como o declínio da lei paterna deixou um vácuo de referências, forçando cada casal a uma tarefa hercúlea: a de inventar sua própria lei. Em seguida, no capítulo catorze, “A Palavra Sem Lei”, a tese de Jean-Pierre Lebrun aprofunda essa análise, argumentando que a crise contemporânea é uma crise da própria palavra, que, desprovida de um fiador simbólico, tornou-se “nua”, frágil e incapaz de sustentar promessas ao longo do tempo.
Este artigo aprofundará essas duas linhas de pensamento, demonstrando como a queda das estruturas verticais de autoridade (Lutereau) levou a uma crise horizontal nas próprias ferramentas que usamos para construir os laços: as promessas e os pactos (Lebrun). Juntas, estas teses compõem um retrato complexo e, por vezes, desolador do amor no século XXI, um amor que navega em um território sem mapas, com a liberdade radical de inventar seu próprio caminho e a angústia constante de construir seus abrigos sobre um solo movediço.
Parte I: O Trono Vazio – Amor e Angústia em um Mundo Pós-Patriarcal (A Tese de Luciano Lutereau)
A crise dos laços amorosos não pode ser compreendida sem antes analisar o colapso da estrutura que, por séculos, os organizou: o patriarcado. Lutereau, na esteira do pensamento psicanalítico, analisa este fim não como um evento meramente sociológico, mas como uma profunda mutação simbólica.
1.1. O Declínio do “Nome-do-Pai” e o Vácuo de Referências
Na psicanálise lacaniana, o “Nome-do-Pai” não se refere ao pai biológico, mas à função simbólica da Lei. Era a instância que representava a interdição, a ordem e o limite, fornecendo os “roteiros” e as referências para os papéis de gênero, a sexualidade e a estrutura familiar. O patriarcado era a manifestação social dessa lei simbólica, ditando o que era ser homem, mulher, marido, esposa, e como esses papéis deveriam se relacionar.
O declínio dessa função, segundo Lutereau, gera um imenso vácuo de referências. As velhas regras não valem mais, os antigos mapas se tornaram obsoletos. Essa queda nos lança em uma condição paradoxal: por um lado, uma liberdade sem precedentes para definir quem somos e como amamos; por outro, uma profunda angústia, a vertigem de estar em um território aberto, sem garantias e sem um caminho pré-definido. Estamos, como nunca antes, livres para inventar o amor, mas também terrivelmente sós nessa tarefa.
1.2. A Oficina do Amor: O Casal como Legislador de Si Mesmo
Como consequência direta desse vácuo, a natureza do pacto amoroso se transforma radicalmente. Se antes o amor era uma adesão a um modelo tradicional pré-existente (seja ele civil ou religioso), hoje ele se torna um trabalho criativo, ético e constante. Cada casal é convocado à tarefa de se tornar legislador de si mesmo, de inventar seu próprio contrato, sua “lei privada”.
Essa “oficina do amor” exige um diálogo permanente e exaustivo. Fidelidade, monogamia, divisão de tarefas, expectativas – nada mais é dado como certo. Tudo precisa ser ativamente negociado, criado e, crucialmente, renovado dia após dia. Isso coloca uma responsabilidade imensa sobre os ombros dos amantes. O pacto deixa de ser um evento único, assinado no altar ou no cartório, para se tornar um processo contínuo. A sobrevivência do vínculo depende da capacidade do casal de sustentar essa invenção diária, uma tarefa que exige uma maturidade emocional e uma habilidade de comunicação que a estrutura antiga não demandava.
1.3. A Invenção Quebrada: A Nova Face da Traição e do Ciúme
Neste novo paradigma, a traição e o ciúme são radicalmente ressignificados.
- A Traição como Falha na Invenção: A infidelidade deixa de ser a transgressão de uma Lei universal e externa (o pecado contra Deus, o crime contra a sociedade) para se tornar a falha na invenção privada do casal. Ela é a prova trágica de que o pacto singular que eles criaram não foi robusto o suficiente para conter os impasses do desejo. A dor se torna mais íntima e desoladora, pois não se trata mais de quebrar uma regra de todos, mas de implodir o pequeno universo de regras que o casal se esforçou tanto para construir.
- O Ciúme Narcísico: Consequentemente, o ciúme também se transforma. Ele deixa de ser primariamente edípico (a rivalidade triangular clássica) para se tornar narcísico. O que dói mais não é a perda do objeto de amor para um rival, mas a dor humilhante de ter o próprio valor e a própria identidade questionados. A traição do parceiro é vivida como uma invalidação do projeto de amor e, por extensão, de si mesmo como parceiro desejável. É uma ferida direta na frágil autoestima do sujeito contemporâneo, que já não tem os papéis sociais rígidos para sustentar sua identidade.
Parte II: A Palavra Sem Lei – A Crise da Promessa (A Tese de Jean-Pierre Lebrun)
Jean-Pierre Lebrun aprofunda o diagnóstico ao focar na ferramenta fundamental com a qual os casais tentam construir seus pactos: a palavra. Ele argumenta que a crise estrutural descrita por Lutereau resultou em uma crise da própria linguagem, tornando as promessas perigosamente frágeis.
2.1. O Juiz Ausente: A Queda do Fiador das Promessas
Lebrun postula que a raiz da fragilidade dos laços contemporâneos está na queda de uma instância terceira, que funcionava como fiador da palavra. Esse “Terceiro Garantidor” é outra forma de nomear a Lei simbólica – a Tradição, a Cultura, o Pai simbólico, Deus. Era essa instância que dava peso e validade a um juramento. A promessa “eu juro por Deus” tinha força porque havia um fiador transcendente que a testemunhava e a sancionava.
Sem esse fiador, as relações deixam de ser mediadas por uma lei simbólica e se tornam puramente duais, um perigoso face-a-face. Transforma-se em um campo de pura relação de forças, onde nada assegura o cumprimento de um pacto para além do sentimento do momento. Se não existe uma autoridade externa que valide os contratos, em que alicerce se pode construir a confiança mútua?
2.2. Palavras ao Vento: A Promessa como Sentimento e Não como Pacto
Como consequência direta da queda do fiador, a própria natureza da promessa se altera. Ela passa de uma “palavra-lei” para uma “palavra nua”.
- A “palavra-lei” tinha um peso transcendente; ela vinculava o sujeito a uma ação futura, independentemente de seus sentimentos posteriores. Era um ato performático que criava uma obrigação.
- A “palavra nua”, segundo Lebrun, é a promessa contemporânea. Ela é nua porque se apoia unicamente no sentimento de quem a profere no momento da enunciação.
Assim, a frase “Eu prometo te amar para sempre” deixa de ser um pacto que vincula ao futuro para se tornar a mera descrição de uma intenção passageira: “Neste exato momento, eu sinto um amor tão intenso que acredito que ele durará para sempre”. A promessa perde seu poder de criar um compromisso duradouro e se torna um relatório instantâneo sobre um estado afetivo volátil.
2.3. A Promessa Quebrada: A Traição como Sintoma da Palavra Frágil
Este ponto conecta diretamente a crise simbólica ao ato da traição. Se as promessas são nuas, desprovidas de uma lei que as sustente e baseadas apenas em sentimentos, a infidelidade deixa de ser um perjúrio (a quebra de um juramento sagrado) para se tornar uma consequência quase lógica.
A traição é analisada como o sintoma máximo de um mundo onde a palavra se tornou líquida. É a prova material de que uma promessa baseada apenas no sentimento do momento está fadada a se romper quando o sentimento, inevitavelmente, se transforma. Não é que as pessoas se tornaram mais imorais; é que a própria estrutura simbólica que dava solidez às promessas se dissolveu. A traição se torna, assim, a manifestação trágica de uma cultura onde as palavras parecem ter perdido seu peso, sua capacidade de construir algo sólido e duradouro.
Conclusão: A Coragem de Construir sobre a Areia
A justaposição das teses de Lutereau e Lebrun nos deixa diante de um paradoxo monumental que define a condição amorosa do século XXI. Por um lado, com o fim do patriarcado, fomos presenteados com a liberdade e a responsabilidade de sermos os arquitetos de nossos próprios pactos amorosos (Lutereau). Por outro, as próprias ferramentas que temos para construir esses pactos – as palavras, as promessas – se tornaram frágeis, nuas e inconstantes, como palavras ao vento (Lebrun).
Estamos, portanto, em uma situação de imensa complexidade: somos convocados a uma tarefa de invenção constante, mas as fundações sobre as quais tentamos construir são instáveis. A traição, nesse cenário, emerge como a expressão última dessa dupla crise: é a falha da invenção criativa do casal e, ao mesmo tempo, o sintoma de um mundo onde as promessas se tornaram tão fluidas quanto os sentimentos que as originam.
Para além de uma visão moralista, a psicanálise nos convida a refletir sobre essa nova realidade. Não há respostas fáceis nem um caminho de volta aos antigos roteiros. A única via possível parece ser a de assumir a angústia da nossa liberdade, desenvolver uma nova cultura do diálogo e ter a coragem de tentar construir algo significativo, mesmo sabendo que estamos construindo sobre a areia de um mundo sem garantias externas. A questão que permanece, tanto para nós quanto para as novas gerações, é se teremos a maturidade e a disposição para este trabalho ético, constante e incerto que o amor, hoje, exige de nós.

