Introdução: Navegando nas Águas do Pós-Trauma
Após uma jornada investigativa através das estruturas da solidão, da performance, do reconhecimento e do desejo, o curso “Psicanálise e Traição, Autossabotagem” nos conduz agora ao epicentro da dor: o momento posterior à ferida. Os capítulos nove e dez representam uma mudança de foco crucial, da análise da cena da traição para a complexa e delicada clínica do seu aftermath. Entramos no território do trauma, do ressentimento e do luto, onde a psique, fragmentada pelo impacto da quebra de confiança, enfrenta uma encruzilhada existencial.
Neste terceiro módulo, somos guiados por dois faróis teóricos. No capítulo nono, “Ressentimento versus Indignação”, a psicanalista Maria Rita Kehl nos apresenta a dimensão ética da dor. Ela nos mostra que, embora não sejamos culpados pela injúria sofrida, somos radicalmente responsáveis pelo destino que daremos a ela, uma escolha que se polariza entre a paralisia de uma “paixão triste” e a potência transformadora de uma “paixão alegre”. Em seguida, no capítulo décimo, “A Clínica da Destrutividade”, o psicanalista Werner Bohleber nos oferece o mapa clínico para navegar no rescaldo do trauma. Ele argumenta que a traição aguda não causa apenas tristeza, mas ativa a pulsão de morte (Thanatos), liberando uma força de desligamento que exige um manejo clínico específico para ser retransformada em força vital (Eros).
Este artigo aprofundará estas duas perspectivas, demonstrando que a escolha ética proposta por Kehl é a porta de entrada para o processo de cura, enquanto a clínica de Bohleber nos fornece as ferramentas para atravessar o perigoso território da destrutividade ativada pelo trauma. Juntos, eles compõem um guia para a tarefa mais hercúlea de todas: a de transformar a energia da destruição em força para a reconstrução.
Parte I: O Afeto que Aprisiona e o que Transforma (A Tese de Maria Rita Kehl)
A experiência da traição deixa uma ferida. A forma como essa ferida é metabolizada psiquicamente determinará se ela se tornará uma cicatriz, um lembrete de uma superação, ou uma chaga aberta que infecta toda a existência. Maria Rita Kehl nos mostra que essa metabolização passa por uma escolha afetiva e ética fundamental.
1.1. A Prisão do Passado: O Ressentimento como Paixão Triste e Luto Impossível
Kehl define o ressentimento não como uma raiva ativa e potente, mas como uma “paixão triste e impotente”. É um afeto reativo, caracterizado pela ruminação infindável da injúria. O sujeito ressentido não age, ele reage perpetuamente ao trauma original. Psicanaliticamente, o ressentimento é um luto que falhou. Incapaz de elaborar a perda (da confiança, da imagem idealizada do outro, do projeto de futuro), o sujeito permanece psiquicamente acorrentado ao seu ofensor.
Nesta dinâmica paralisante, a posição de vítima se torna a única identidade possível. Toda a energia libidinal é investida em manter a ferida aberta, em remoer a dor, pois é através dessa dor que o sujeito continua a se sentir conectado ao objeto perdido e à sua própria história. É um estado de “luto inacabado”, onde a pessoa fica congelada no tempo, revivendo incessantemente o momento da injúria. Essa ruminação não busca uma solução; ela é a própria solução patológica encontrada para não ter que lidar com o vazio deixado pela perda e com a difícil tarefa de se reconstruir.
1.2. A Força da Fênix: A Indignação como Paixão Alegre e Potência de Ação
Em oposição direta ao ressentimento, Kehl posiciona a indignação. Se o ressentimento é uma paixão triste que aprisiona, a indignação é uma “paixão alegre” que transforma e liberta. A alegria aqui não se refere à felicidade, mas à potência de ação, no sentido espinosano do termo. A indignação acontece quando o sujeito consegue realizar um deslocamento psíquico fundamental: o foco sai da ofensa pessoal, do lamento narcísico (“o que fizeram a mim“), para a injustiça do ato em si.
Ao fazer esse movimento, o indivíduo conecta sua dor particular a um princípio ético universal. A traição deixa de ser apenas uma ferida pessoal para se tornar um exemplo de uma violação de confiança, de um desrespeito à dignidade humana. Essa universalização da dor é o que a transforma. A queixa paralisante (“pobre de mim”) se converte em uma força motriz para a ação (“isso que aconteceu é inaceitável e algo precisa ser feito”). A energia, antes gasta na ruminação, é agora liberada para reparar simbolicamente o prejuízo – não necessariamente através da vingança, mas através da reconstrução de um futuro mais justo para si mesmo e, potencialmente, para os outros. A Fênix renasce das cinzas não por esquecer o fogo, mas por usar a energia desse fogo para impulsionar seu voo.
1.3. O Poder da Escolha: A Responsabilidade Ética de Transformar a Dor
Aqui reside o clímax da proposta de Kehl. “Embora o sujeito não seja culpado pela ferida que sofreu, ele é eticamente responsável pelo destino que dará à sua dor”. Esta é a encruzilhada existencial. Permanecer no ressentimento é apresentado como uma “covardia moral”, uma recusa a assumir a responsabilidade pela própria vida e a se entregar à identidade cômoda, ainda que dolorosa, de vítima.
A passagem do ressentimento à indignação não é um processo natural ou automático; é uma escolha, um ato de coragem. É a decisão de deixar de ser o “objeto passivo da injúria” para se tornar o “autor da própria superação”. É nesse ato que o sujeito resgata sua agência e sua liberdade. A pergunta provocativa “em que ponto a dor deixa de ser algo que aconteceu comigo e se torna uma história que eu escolho continuar contando sobre mim mesmo?” captura perfeitamente essa virada. A escolha pela indignação é o primeiro e mais crucial passo no caminho da cura, pois é ela que libera a energia psíquica necessária para o trabalho de reconstrução que se seguirá.
Parte II: A Clínica da Destrutividade (A Tese de Werner Bohleber)
Se Kehl nos mostra a escolha ética que inicia a cura, Bohleber nos mostra o que acontece nas profundezas da psique quando o trauma atinge seu núcleo, e como a clínica psicanalítica pode manejar a explosão de destrutividade que se segue.
2.1. O Interruptor de Thanatos: A Traição como Ativação da Pulsão de Morte
A tese central de Bohleber é que um trauma agudo como a traição não provoca apenas afetos “simples” como a tristeza. Ele ativa a pulsão de morte (Thanatos). Esta não é uma fantasia de morte literal, mas uma força psíquica de desligamento, de desvinculação. A quebra radical da confiança libera uma energia que ataca a própria capacidade de ligar, de conectar.
Essa força de desligamento opera em três frentes:
- Ataca os vínculos externos: A confiança no outro é destruída, gerando um isolamento defensivo e uma suspeita generalizada.
- Ataca a capacidade de pensar: A ruminação e o choque traumático impedem o pensamento claro, a simbolização e a elaboração.
- Ataca o próprio sentido da vida: O mundo interior perde “a cor, o sabor, a conexão”, fragmentando a psique por dentro e gerando um sentimento de vazio e desvitalização.
É uma experiência de aniquilação psíquica, um “desligar” interno que ameaça a continuidade do self.
2.2. Os Dois Vetores da Ruína: Heterodestrutividade e Autodestrutividade
A pulsão de morte, uma vez ativada, precisa de um destino. Bohleber explora suas duas principais manifestações clínicas:
- A Heterodestrutividade (Morte para Fora): É a pulsão de morte projetada no mundo externo. Expressa-se como uma raiva intensa, ódio e um desejo de vingança que busca aniquilar simbolicamente (ou, em casos extremos, literalmente) o outro. É a energia da indignação em seu estado bruto, não mediada pela ética, mas impulsionada pelo desejo de destruir o objeto que causou a dor.
- A Autodestrutividade (Morte para Dentro): É a pulsão de morte voltada contra o próprio self. É o ressentimento em sua forma mais letal. Manifesta-se como apatia, depressão, um sentimento de “morte em vida” e, crucialmente, como autossabotagem. O sujeito passa a atacar a si mesmo, a destruir suas próprias chances de recuperação e felicidade, como se estivesse concordando inconscientemente com o “veredicto” de que não tem valor, lançado pelo ato da traição. É a implosão da energia vital.
Esses dois vetores constituem o núcleo do sofrimento pós-traumático, oscilando entre o desejo de destruir o mundo e o impulso de se destruir.
2.3. A Alquimia da Cura: Contenção, Simbolização e Transformação
Diante desse cenário de ruína, qual é o manejo clínico? O trabalho, segundo Bohleber, é um processo de alquimia psíquica.
- Continente e Acolhimento: O primeiro passo é o analista oferecer um continente, um espaço seguro e acolhedor para essa destrutividade avassaladora. O terapeuta precisa suportar a transferência traumática – o ódio, a desconfiança, a dor bruta projetada nele – sem retaliar, funcionando como uma testemunha robusta que não se despedaça.
- Simbolização e Ligação: A técnica visa ajudar o paciente a nomear, a ligar e a simbolizar esses afetos brutos. A raiva sem nome se torna uma narrativa compreensível; o vazio se torna a expressão de uma perda nomeada. O objetivo é transformar a “compulsão à repetição” (onde o trauma é atuado incessantemente) em “recordação” (onde o trauma pode ser lembrado, pensado e historizado).
- Transformação e Integração: A solução não é eliminar a agressividade, mas integrá-la. A energia destrutiva de Thanatos, uma vez contida e simbolizada, pode ser transformada novamente em força vital, em Eros. A mesma energia que alimentava a vingança pode ser canalizada para a reconstrução da carreira; a mesma força que levava à autossabotagem pode ser usada para estabelecer limites saudáveis. A imagem do Kintsugi, a arte japonesa de reparar cerâmica quebrada com ouro, é a metáfora perfeita: a cura não apaga a fratura, mas a preenche com um material precioso, tornando o objeto mais forte e mais belo em sua história de resiliência.
Conclusão: De Vítima a Alquimista da Própria Dor
Ao integrar as perspectivas de Kehl e Bohleber, emerge um caminho claro, ainda que árduo, para a superação do trauma da traição. O percurso se inicia com um ato ético de coragem: a escolha pela indignação em detrimento do ressentimento. Essa escolha é o que destrava a energia psíquica, tirando o sujeito da prisão do passado e dando-lhe a agência para agir.
Contudo, essa energia liberada é a própria força primal de Thanatos, uma potência destrutiva que pode se voltar contra o mundo ou contra si mesmo. É aqui que a clínica se torna essencial. O processo terapêutico funciona como o laboratório do alquimista, onde essa matéria-prima perigosa – a raiva, o ódio, a dor – é contida, processada e transmutada. O objetivo final é hercúleo: transformar o veneno em antídoto, a pulsão de morte de volta em pulsão de vida.
O curso nos eleva, assim, para muito além da perspectiva do senso comum sobre a traição. Ele nos oferece um olhar clínico e profundo que vê na ferida não um fim, mas o início de um trabalho psíquico. Um trabalho que, se bem-sucedido, permite ao sujeito deixar de ser a vítima de uma injúria para se tornar o alquimista de sua própria dor, capaz de reconstruir sua vida não apesar da quebra, mas a partir dela, com a força e a beleza do ouro que preenche suas cicatrizes.

