Do Sofrimento à Simbolização: A Pluralidade Terapêutica no Enfrentamento dos Vícios

O tratamento das dependências é uma das fronteiras mais desafiadoras da clínica contemporânea, um campo onde nenhuma abordagem isolada detém a chave para a cura. A máxima latina “Ne quid nimis” (Nada em excesso) serve como um antídoto conceitual para a própria definição do vício: uma compulsão que ignora limites, uma perda da medida que inevitavelmente conduz à dor. Contudo, outra frase de Ovídio, “Perfer et obdura; dolor hic tibi proderit olim” (Seja paciente e persevere; esta dor um dia lhe será útil), nos oferece uma perspectiva terapêutica crucial: o sofrimento, quando suportado e elaborado, pode ser o portal para a libertação e o crescimento.

Este artigo explora a necessidade de uma visão multidisciplinar e integrada para tratar os vícios, partindo de um pessimismo freudiano inicial para chegar a um campo rico de diálogos entre a psicanálise, as neurociências e outras terapias, reconhecendo que a dependência é um fenômeno que se inscreve no corpo, na mente e no laço social.

A Psicanálise como Bússola: Escuta, Transferência e a Falha no Desejo

A psicanálise permanece como uma referência fundamental para compreender as dependências. Ela nos ensina que o vício, ainda que busque o prazer, está intrinsecamente ligado a um sofrimento profundo. A compulsão pelo gozo mortífero emerge de uma falha na simbolização do desejo. Quando a falta estrutural, inerente ao ser humano, não encontra palavras para ser elaborada, ela irrompe no corpo e no ato. O corpo fala através de tremores, espasmos e angústias, manifestando uma dor que a palavra não conseguiu conter.

Nesse cenário, a clínica psicanalítica, especialmente a de orientação lacaniana, oferece ferramentas indispensáveis:

  1. A Escuta Terapêutica: Uma escuta que vai além do sintoma, buscando a raiz simbólica do sofrimento.
  2. A Transferência: O vínculo com o analista se torna um novo palco onde os padrões de dependência podem ser reeditados e, crucialmente, ressignificados. O analista atua como um “terceiro” no laço entre o sujeito e o objeto-vício, permitindo que a repetição se transforme em narrativa.
  3. A Transformação do Sujeito: O objetivo não é a mera abstinência imposta de fora, mas uma transformação que ocorre de dentro para fora (ab intra). O sujeito precisa se apropriar do seu desejo e da sua palavra, encontrando novas formas de lidar com a angústia sem recorrer ao objeto que o escraviza.

Da Reserva Freudiana à Expansão das Abordagens

Inicialmente, Freud e os primeiros psicanalistas expressaram um certo ceticismo quanto à eficácia da análise no tratamento de dependentes, devido à dificuldade de manter a motivação e à visão da dependência como uma regressão libidinal massiva. Contudo, a psicanálise precisou se expandir. A partir das décadas de 1960 e 1970, teóricos como Kohut, Kernberg e Krystal começaram a integrar princípios psicanalíticos com modalidades de grupo e comunidades terapêuticas.

A virada mais significativa veio com o diálogo com as neurociências. A abordagem neuropsicanalítica, a partir dos anos 2000, trouxe um otimismo cauteloso, fundamentado em conceitos como a neuroplasticidade. A capacidade do cérebro de se reorganizar em resposta a novas experiências oferece uma base científica para a eficácia de terapias como a TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental), o mindfulness e a própria escuta psicanalítica. A psicanálise não pode mais se autorizar a trabalhar sozinha.

A Clínica da Fissura: A Teoria de Massimo Recalcati

O psicanalista italiano Massimo Recalcati oferece uma contribuição vital, focando na “fissura” entre o ato compulsivo e a palavra. Para ele, o vício é uma repetição de um prazer mortífero que existe porque o sujeito não consegue verbalizar sua dor.

  • O Corpo que Fala: O dependente fala com o corpo. Sintomas como tremores e enxaquecas são a linguagem de um sofrimento que não encontrou outra via de expressão.
  • O Analista como Terceiro: Recalcati propõe que o analista intervenha para deslocar o gozo do objeto tóxico para o laço transferencial. Essa presença permite a reinserção do desejo e transforma o ato compulsivo em narrativa. O corpo, antes palco de destruição, pode se tornar um espaço de simbolização e criatividade.
  • A Cura como Reconstrução do Laço Social: A verdadeira cura não é apenas a abstinência, mas a instalação de vínculos estáveis. A reconstrução do laço social, através de redes de apoio e prevenção, é fundamental para educar o sujeito para o desejo e para a vida em comunidade.

As Múltiplas Faces do Vício: Jogos, Controle e Cultura

A dinâmica da dependência se manifesta em diversos comportamentos:

  • Vício em Jogos de Azar: O jogo reencena o risco do desejo. O sujeito aposta a própria falta em troca de um gozo absoluto. A ilusão de controle sobre o sistema mascara uma compulsão à repetição; joga-se não para ganhar, mas para repetir o ciclo de tensão e alívio, uma verdadeira pulsão de morte. O filme Joias Brutas (2019) retrata essa trajetória obsessiva.
  • Vício em Controle e Organização Excessiva: O ritual obsessivo encobre uma angústia insuportável diante do caos da vida e do desejo. A ordem externa tenta, em vão, compensar o caos interno. É uma forma patológica de evitar o imprevisível, como visto no filme Melhor é Impossível (1997).

A cultura, por sua vez, reflete e analisa essas dinâmicas. O filme “Réquiem para um Sonho”, já mencionado, revela a interdependência patológica dos vícios, mostrando como os circuitos de dependência se organizam em rede, como um sofrimento compartilhado e um colapso narcísico coletivo. A narrativa visual do filme é uma metáfora poderosa para o trabalho clínico, mostrando o fracasso do recalque e o retorno devastador da pulsão.

A Função Simbólica e o Nome-do-Pai

No final, a jornada terapêutica, segundo a psicanálise lacaniana, passa pela inscrição do sujeito na ordem simbólica. O conceito de Nome-do-Pai não se refere ao pai biológico, mas à função da lei, da interdição, que estrutura a personalidade e estabelece a distinção entre o real, o imaginário e o simbólico. É essa função que permite ao sujeito sair da fusão com o gozo mortífero e encontrar um lugar para seu desejo dentro de um laço social regulado.

Conclusão: Rumo a uma Clínica Comunitária e Integrada

A lição mais profunda é que a psicanálise, ou qualquer outra terapia, não pode mais se autorizar a trabalhar de forma isolada no enfrentamento das dependências. A complexidade do fenômeno exige uma visão coletiva e comunitária, onde a multidisciplinaridade – unindo psicanálise, neurociência, medicina, terapia comportamental e assistência social – seja a norma. Somente juntos, em uma rede de saberes e práticas, conseguimos oferecer um suporte robusto o suficiente para ajudar o sujeito a transformar a dor que o aprisiona em uma força propulsora para uma vida com mais sentido e liberdade.

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