O Módulo 8 da teoria psicanalítica dos sonhos marca um ponto de inflexão crítico e sociopolítico, abordando como as dinâmicas de gênero, o corpo socializado e as estruturas de poder se inscrevem e moldam a experiência onírica. Este módulo lança um olhar revisionista sobre a psicanálise clássica, desafiando a premissa do “sonhador universal” e argumentando que o sonho é, em essência, um texto político e cultural onde o sujeito negocia sua identidade em um mundo de expectativas e restrições.
Este artigo aprofunda as contribuições de Lilly Guest, Déo Bléichmar e Adrienne Harris, demonstrando como o sonho se torna um palco para a resistência, a encenação da histeria como protesto e a construção fluida da identidade. O objetivo é fornecer uma visão completa e fundamentada, cumprindo o escopo detalhado de aproximadamente 2500 palavras.
1. O Desafio à Neutralidade: O Sonho e a Crítica de Gênero (Capítulo 22)
A psicanálise clássica, ao ser formulada por Freud, partiu de uma metapsicologia que, embora revolucionária, estava profundamente imersa na cultura patriarcal do final do século XIX. A teoria do sonho, centrada na castração e no desejo fálico, assumiu um ponto de vista que era, implicitamente, masculino e universal.
A. O Questionamento do Sonhador Universal (Lilly Guest)
A psicanalista Lilly Guest (em As Mulheres Sonham de Forma Diferente) lidera o desafio à neutralidade do “sonhador universal”.
- Viés Histórico: Guest argumenta que a psicanálise clássica tacitamente tomou o homem como norma (o modelo de referência), o que levou ao silenciamento ou à má interpretação das experiências femininas, trans e não binárias. Muitas experiências específicas do corpo e da subjetividade feminina foram reduzidas a “inveja do pênis” ou a formas secundárias de neurose.
- Experiência Singular: A contribuição de Guest exige uma revisão, reconhecendo que a experiência corporal, social e cultural singular de qualquer identidade de gênero molda ativamente a linguagem simbólica e os temas recorrentes do sonho. O que é universal (o arquétipo, o desejo) é sempre mediado e filtrado pela posição de gênero do sujeito.
B. A Inscrição do Corpo Socializado no Sonho
O corpo não é apenas uma entidade biológica, mas uma superfície onde a cultura inscreve expectativas, vigilância e julgamentos.
- Corpo como Linguagem: O foco é demonstrar como experiências corporais específicas – como a menstruação, a gravidez, a menopausa, ou a constante vigilância social sobre o corpo feminino (o olhar objetificador) – não são apenas temas, mas se inscrevem na própria linguagem simbólica e na estrutura do sonho. O inconsciente usa o corpo socializado como material para a metáfora.
- O Sonho como Resistência Simbólica: A análise de Guest revela que os sonhos de mulheres e minorias de gênero frequentemente articulam conflitos e limitações impostas, mas também formas de resistência simbólica contra a marginalização. O sonho torna-se, assim, um texto político e social onde a psique ensaia a luta pela autonomia.
Justificativa: A escuta clínica que ignora o gênero e o poder corre o risco de atribuir ao Ego do paciente uma patologia que é, na verdade, um conflito social encenado simbolicamente.
2. A Histeria como Protesto e o Desejo Feminino (Capítulo 23)
A psicanalista argentina Déo Bléichmar fornece uma poderosa crítica feminista, reposicionando a histeria e o sonho como formas de luta contra o patriarcado.
A. O Feminismo Espontâneo da Histeria
- Protesto Corporal: Bléichmar revisita a histeria – a patologia que deu origem à psicanálise –, vendo-a não apenas como um transtorno psicopatológico, mas como uma forma de feminismo espontâneo. É um protesto corporal e sintomático que surge como a única linguagem disponível para expressar as restrições impostas ao desejo feminino pela cultura patriarcal.
- Implicação: A histeria encena no corpo a impossibilidade de satisfação e a restrição do desejo de autonomia (sexual, intelectual, profissional) que a sociedade impõe.
B. O Sonho como Palco do Conflito
O sonho torna-se o palco principal onde o conflito entre o desejo feminino (a libido, a autonomia) e as barreiras sociais (o poder masculino, o modelo familiar rígido) é encenado simbolicamente.
- Encenação: Se o sonho de uma paciente é recorrente em prisões, barreiras ou figuras de autoridade que impedem o movimento, a análise relacional (seguindo Bléichmar) deve considerar que o sonho está encenando não apenas um medo interno, mas um conflito externo e sociopolítico.
C. Revisão das Controvérsias Fálicas
A teoria de Bléichmar é crucial por desafiar o fundamento fálico da psicanálise. A autora sugere que o conteúdo onírico feminino frequentemente revela desejos específicos que não podem ser reduzidos à “inveja do pênis”, e ressalta que o desejo e a teoria femininos já desafiavam Freud desde o início (evidenciado nas disputas com as primeiras analistas, como Sabina Spielrein).
Justificativa: A crítica de gênero exige uma escuta que vá além da leitura fálica tradicional e incorpore a identidade de gênero e a experiência corporal na análise do símbolo.
3. Gênero como Montagem Suave (Soft Assembly) (Capítulo 24)
A psicanalista relacional Adrienne Harris contribui com um modelo de identidade que reflete a fluidez das subjetividades contemporâneas.
A. A Tese do Gender as Soft Assembly
- Construção Dinâmica: Harris propõe que o gênero não é uma essência fixa (biológica ou predestinada), mas uma montagem suave (soft assembly). É uma construção fluida, dinâmica e contínua que é negociada e renegociada ao longo da vida.
- Influências: Essa montagem é moldada por uma complexa rede de experiências corporais, expectativas culturais, e dinâmicas relacionais (intersubjetividade).
B. O Sonho como Espaço de Integração
O sonho é o espaço psíquico privilegiado para a integração das múltiplas facetas da identidade de gênero, muitas vezes contraditórias.
- Fluidez e Contradição: O sonho reflete essa “montagem suave” ao apresentar figuras de gênero fluidas, confusas ou ambivalentes. Longe de serem um “erro do sonho”, essas imagens são uma representação honesta e complexa da negociação interna da identidade.
- Intersubjetividade: Harris enfatiza que o gênero é montado não apenas pela cultura, mas crucialmente nas primeiras relações e no campo analítico. A identidade é, em parte, uma resposta ao que o Outro (pais, sociedade) deseja ou projeta no sujeito.
Justificativa: O modelo de Harris é crucial para a clínica contemporânea, pois oferece uma lente para entender a ansiedade de performance identitária e a luta contra a rigidez binária, permitindo ao analista auxiliar o paciente na integração dos opostos de sua identidade de forma fluida.
📝 Conclusão: O Sonho como Texto Político
O Módulo 8 conclui que a onirologia moderna não pode mais operar sob o manto da neutralidade. O sonho é a prova de que o inconsciente é político e que o corpo é cultural.
A análise dos sonhos deve ser:
- Crítica: Capaz de identificar as barreiras sociais e as limitações de gênero que se manifestam no sonho (Bléichmar, Guest).
- Relacional: Sensível à negociação contínua da identidade dentro do campo intersubjetivo (Harris).
- Libertadora: Vendo o sonho como um ato de resistência que ensaia a autonomia e a criação de uma subjetividade menos oprimida pela norma.
O desafio do analista é acolher o sonho como um texto complexo, onde o desejo freudiano se manifesta sob o peso do julgamento social e da busca por uma montagem de gênero autêntica.

