O Carrasco Invisível: O Superego, a Cultura Organizacional e a Gênese do Burnout

Introdução: O Deserto Existencial por Trás da Performance

Meus caríssimos cursistas, parceiros de jornada,

Sejam bem-vindos a uma escavação nas fundações psíquicas do sofrimento laboral. Nosso tema de hoje, o Superego e a cultura organizacional, nos leva ao coração de uma das dinâmicas mais cruéis e insidiosas que produzem o burnout. A pergunta que abre nossa reflexão, emprestada da sabedoria antiga na forma da expressão “Quo vadis?” (Para onde vais?), emerge com força total no auge da crise de esgotamento. Quando as metas que nos guiavam perdem o sentido e os ideais se revelam miragens, somos confrontados com um deserto existencial e com a questão premente sobre nosso desejo, soterrado sob anos de obrigações e performances.

A psicanálise nos oferece uma resposta perturbadora e, ao mesmo tempo, libertadora: a fonte da pressão mais implacável que experimentamos no trabalho não vem, em última instância, de nosso gerente ou dos prazos. Ela emana de um tirano interno, um carrasco psíquico que internalizou as demandas da cultura e se tornou nosso próprio algoz: o Superego. Este artigo se propõe a desvelar os mecanismos dessa tirania. Investigaremos como as organizações, muitas vezes de forma sutil, manipulam nosso desejo de reconhecimento, trocando um saudável Ideal do Ego por um Ego Ideal de perfeição inatingível. Analisaremos como essa dinâmica é sustentada pelo imperativo do gozo do capitalismo contemporâneo, que nos lança em um comando perverso de amar o próprio sacrifício. E, por fim, mostraremos como a cura passa não por uma adaptação do indivíduo, mas por uma “cirurgia” na própria cultura da organização.


## A Conexão Psicanalítica: O Superego como o Verdadeiro Tirano 🧠

A tese central é que a pressão que leva ao burnout não é primariamente externa, mas interna. O ambiente de trabalho tóxico fornece o roteiro, mas o ator principal do drama do esgotamento é o nosso próprio Superego.

  • A Internalização da Cultura Organizacional: O Superego é a instância psíquica que se apropria da voz e das exigências da cultura da empresa, tornando-as uma lei interna. Quando os valores da organização são compatíveis com os do sujeito, a relação é saudável. No entanto, quando há um conflito, o sujeito, para sobreviver, muitas vezes renuncia a seus próprios valores e passa a ser governado por crenças que lhe são estranhas, mas que ele adota como suas.
  • A Autocrítica como Roteiro de Sofrimento: O resultado dessa internalização é que o sujeito se torna seu próprio algoz. A autocrítica deixa de ser uma ferramenta de aprimoramento para se tornar um roteiro incessante de autoataque, minando a autoestima e gerando um estado de ansiedade e culpa permanentes.

A Troca Sutil dos Ideais: A Armadilha Narcísica

A organização explora nosso desejo fundamental de reconhecimento através de uma manipulação sutil dos ideais. A psicanálise diferencia:

  • O Ideal do Ego: É o modelo que nos dignifica e orienta, uma bússola interna formada a partir da admiração por figuras que representam nossos valores. É uma meta que nos impulsiona.
  • O Ego Ideal: É uma imagem narcísica de perfeição e onipotência, uma miragem de ser completo, sem falhas.

A cultura corporativa da performance frequentemente opera uma troca perversa: ela nos seduz a abandonar nosso Ideal do Ego (o que gostaríamos de ser) em troca da perseguição de um Ego Ideal empresarial (o que a empresa exige que pareçamos ser). Ao nos fazer perseguir essa miragem de perfeição, o sistema nos condena a um sentimento crônico de fracasso, pois o ideal é, por definição, inatingível.

O Imperativo do Gozo como Combustível

Essa dinâmica é alimentada pelo que a psicanálise lacaniana chama de imperativo do gozo. A tirania do Superego moderno não é a da proibição (“Não farás!”), mas a do comando positivo e ilimitado: “Seja apaixonado! Seja feliz! Seja produtivo! Inove! Supere-se!”. Este comando para uma performance e um prazer totais e constantes é uma ordem impossível de ser cumprida. A tentativa de obedecer a esse imperativo lança o sujeito em uma busca masoquista pelo prazer na própria exaustão, amando o próprio sacrifício como prova de seu valor.


## A Sensibilização: A Espera Kafkiana e a Rebelião Analítica Kafka

A experiência do sujeito sob o domínio desse Superego se assemelha à parábola “Diante da Lei” de Franz Kafka, uma imagem que nos ajuda a sensibilizar para a natureza dessa prisão psíquica.

  • A Vida Profissional como uma Longa Espera: A carreira é metaforizada como uma longa espera diante de uma porta — a porta do sucesso, do reconhecimento, da realização. O sujeito passa a vida tentando se tornar “digno” de entrar, sacrificando tudo na crença de que, um dia, a porta se abrirá.
  • O Superego como o Guarda da Porta: O principal obstáculo, descobre-se, não é externo. É o guarda da porta, o juiz interno, o Superego tirânico que internalizou as leis da organização e que sempre encontra uma nova razão para adiar a entrada, mantendo o sujeito em um estado de perpétua insuficiência.
  • O Burnout como o Momento Kafkiano: O colapso do burnout é a epifania terrível, o instante de lucidez em que o sujeito percebe que a porta sempre esteve aberta apenas para ele e que foi ele mesmo, através de seu guarda interno, que se impediu de entrar. É a descoberta de que a espera foi em vão e de que o sacrifício não terá recompensa.
  • A Intervenção como Interrogatório: A proposta analítica, diante dessa cena, é um ato de rebelião. Não se trata de suplicar ao guarda (o Superego), mas de interrogá-lo, de questionar a autoridade de suas leis. A verdadeira libertação não é, paradoxalmente, receber a permissão para entrar pela porta do ideal, mas encontrar a coragem de dar as costas a ela e caminhar livremente em outra direção, a do próprio desejo.

## Os Conceitos em Foco: A Organização Doente de Leonardo Schlemenson ⚕️

Para aprofundar a análise, recorremos ao psicanalista argentino Leonardo Schlemenson, que nos oferece ferramentas para diagnosticar a própria organização como um sistema patogênico.

  • O Burnout como Sintoma da Organização: O esgotamento e o assédio não são primariamente falhas individuais, mas sintomas de uma organização doente.
  • O Lado Obscuro: Toda empresa possui uma dimensão inconsciente e irracional que, quando dominante, é a verdadeira fonte do sofrimento. Esse “lado obscuro” é composto por fantasias, medos e desejos não ditos que governam a cultura para além do organograma formal.
  • O Ambiente Patogênico e seus Pilares: Um ambiente tóxico que fabrica burnout se sustenta em dois pilares interligados:
    1. Os Pactos Denegatórios: Acordos de silêncio coletivos onde os membros do grupo ativamente negam uma realidade abusiva (a incompetência de um líder, a crueldade de uma meta) para evitar conflitos e preservar uma ilusão de coesão. O principal efeito colateral desses pactos é a destruição da solidariedade e da confiança.
    2. A Liderança Narcísica: Frequentemente, essa cultura tóxica é orquestrada por um líder narcisista que usa a organização como um espelho para sua própria grandiosidade, exigindo adulação constante, perseguindo a crítica e tratando os funcionários como meras extensões de si mesmo.
  • A Cura é Sistêmica, Não Individual: A consequência lógica deste diagnóstico é que a intervenção eficaz não pode se limitar a tratar o funcionário esgotado. É necessária uma “cirurgia” na própria cultura organizacional: a quebra dos pactos de silêncio, a nomeação do sofrimento coletivo e a convocação à responsabilidade coletiva para a transformação do ambiente.

## O Diálogo Cultural: O Superego no Cinema e na Música 🎬

A cultura popular nos oferece retratos vívidos e poderosos da tirania do Superego.

  • Whiplash (Damien Chazelle): O filme é um estudo de caso da relação sádica entre uma figura de autoridade externa (o maestro Fletcher) que encarna a voz do Superego tirânico, e um sujeito (o baterista Andrew) que se engaja em uma busca masoquista pelo ideal de perfeição. A cultura da organização (a orquestra) normaliza o abuso como um método pedagógico necessário para o sucesso, ilustrando a dinâmica da perversão.
  • O Processo (Franz Kafka): A obra de Kafka explora o Superego como uma lei interna, inacessível e irracional. O protagonista, Josef K., é acusado por uma autoridade invisível de um crime que ele desconhece. Ele vive em um estado de culpa inconsciente permanente, e sua busca desesperada por absolvição o leva à exaustão e à ruína. É a metáfora perfeita do sujeito que tenta apaziguar um Superego que nunca pode ser satisfeito.
  • “Stronger” (Kanye West): A música, com seu refrão “That that don’t kill me can only make me stronger”, sampleando Nietzsche, pode ser lida como o hino do Superego do capitalismo contemporâneo. O comando não é de proibição, mas um imperativo de gozo: uma ordem para uma performance e uma auto-otimização ilimitadas. A ideologia da superação infinita, celebrada pela cultura, é precisamente o que alimenta o ciclo do burnout.

Conclusão: A Ponte para a Singularidade

O Superego se revela, portanto, como a ponte crucial que conecta as pressões da organização à economia do sofrimento individual. Ele é a instância que internaliza as demandas externas, transformando-as em um comando autoimposto. O mecanismo central de sua tirania é a manipulação de nossos ideais, trocando a busca saudável por um Ideal do Ego pela perseguição a um Ego Ideal empresarial, uma imagem de perfeição impossível que nos aprisiona em um ciclo de perfeccionismo e culpa.

O burnout, nesta visão, é o colapso do Ego, esmagado nesta dinâmica. A cultura da organização funciona como uma eficiente “fábrica de superegos” tirânicos. A tarefa da psicanálise, e o nosso desafio como cursistas e profissionais, é a de desvelar este processo. É a de ajudar o sujeito (e a nós mesmos) a construir um novo olhar, a questionar o guarda da porta, a dar as costas ao ideal impossível e a resgatar a singularidade do próprio desejo. É um trabalho de desconstrução e reconstrução, tijolo por tijolo, para que possamos edificar uma casa psíquica mais justa, mais humana e, finalmente, mais habitável.

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