O tema das dependências nos convoca a explorar as fronteiras tênues entre a mente e o corpo, um drama existencial onde a psicanálise e a neurofisiologia, antes distantes, hoje travam um diálogo produtivo e essencial. A busca desenfreada pelo prazer, a “luxúria” que, como adverte a máxima latina “Luxuria ad poenam”, inevitavelmente leva ao castigo, não é apenas uma falha moral, mas um sintoma complexo inscrito tanto na história psíquica do sujeito quanto na própria biologia de seu cérebro. Para compreender o vício, é preciso superar reducionismos e abraçar uma visão que integre o corpo como palco do gozo e da repetição, e a mente como o lugar do símbolo e da fantasia.
A máxima bíblica “Medice, cura te ipsum” (Médico, cura-te a ti mesmo) serve como um farol para essa jornada, ressaltando que a busca pela cura exige, antes de tudo, autoconsciência e um olhar para as próprias feridas. Não podemos compreender a dependência nos outros sem antes confrontar a possibilidade dessa mesma fragilidade em nós. O vício, em sua essência, é um fenômeno biopsicossocial que revela a complexa interação entre o cérebro, a história de vida e o contexto social.
A Neuroplasticidade e a Superação do Reducionismo
Por muito tempo, a psicanálise e as neurociências pareceram caminhar em trilhas opostas. Hoje, essa distância foi superada. A descoberta da neuroplasticidade – a capacidade do cérebro de se adaptar, criar novas conexões e reorganizar suas funções ao longo da vida – oferece uma base científica para a eficácia da psicoterapia. O cérebro não é uma máquina estática; ele é moldado pelas nossas experiências.
Isso significa que o ambiente e, crucialmente, as relações de apego precoces, literalmente esculpem as regiões cerebrais responsáveis pela regulação emocional e pela resposta ao estresse. Relações de apego seguras e positivas fortalecem essa arquitetura. Relações falhas, por outro lado, deixam um prejuízo neurobiológico que torna o indivíduo mais vulnerável a buscar na química ou em comportamentos compulsivos uma forma de autorregulação. A psicanálise, ao trabalhar sobre esses traumas de apego, não está apenas ressignificando uma narrativa; está, potencialmente, promovendo uma reorganização dos padrões neuronais.
O Cérebro Sequestrado: A Neurofisiologia do Vício
Do ponto de vista neurofisiológico, o cérebro do dependente é, de fato, “sequestrado”. O vício altera os circuitos neuronais e desregula sistemas de neurotransmissores, principalmente a dopamina, associada ao prazer e à recompensa. O corpo é então convocado como o lugar privilegiado para a experiência de um gozo que ultrapassa o princípio do prazer. É uma repetição compulsiva, uma pulsão de morte que busca uma satisfação absoluta e paradoxal, que ao mesmo tempo alivia e destrói.
É nesse ponto que a psicanálise e a neurociência se encontram. A neurofisiologia nos mostra o como – os circuitos e as químicas. A psicanálise nos revela o porquê – o sentido inconsciente dessa repetição. A substância ou o comportamento aditivo passam a ocupar o lugar de um objeto primordial, reeditando fantasias de amparo, de ser amado, de preenchimento de uma lacuna fundamental. A sensação de “sem isso eu não funciono” revela a profundidade desse vínculo, onde a química se torna o único “outro” confiável.
A “Dor Branca”: A Crise dos Opiáceos e o Trauma Silenciado
A atual crise dos opiáceos pode ser compreendida como uma resposta a uma “dor branca”: um sofrimento emocional crônico e silenciado, frequentemente ligado a traumas de apego que nunca foram simbolizados. Os opiáceos, com seu potente efeito analgésico, não mascaram apenas a dor física, mas essa dor psíquica difusa. A neurociência explica como essas substâncias ativam os circuitos de recompensa, mas é a escuta psicanalítica que dá sentido a essa busca, revelando os vínculos primitivos que são projetados na droga. A substância se torna a única companhia em um mundo de isolamento afetivo, um fenômeno biopsicossocial que afeta tanto jovens quanto adultos.
A Negação Coletiva: O Vício na Cultura
A complexidade das dependências se reflete na cultura, que muitas vezes opera em um estado de negação. A peça “Um Inimigo do Povo”, de Henrik Ibsen, serve como uma poderosa metáfora para esse fenômeno. A história do Dr. Stockmann, que tenta expor a contaminação das águas de sua cidade e é brutalmente silenciado pela comunidade que prefere o lucro à verdade, espelha a dinâmica social em torno do vício.
- Negação e Autossabotagem Coletiva: A sociedade, assim como o indivíduo dependente, muitas vezes prefere ignorar o sintoma, mesmo diante de evidências claras. Existe uma resistência à mudança e um apego a um prazer ilusório ou a uma falsa ordem.
- A Ética do Desejo: Ibsen não oferece uma solução fácil, mas aponta para a importância de um sujeito ético que sustenta seu desejo contra a corrente. Na clínica das dependências, é a ética do desejo que pode fazer frente ao automatismo do circuito do gozo. Sair do ciclo vicioso que “alucina e escraviza” exige, muitas vezes, a mão de outro que ajude a resgatar esse desejo.
Relacionamentos Tóxicos e Autoflagelação: O Vício nos Vínculos
A dependência não se restringe a substâncias. Ela se manifesta de forma potente nos vínculos.
- Relacionamentos Tóxicos: Muitas vezes, repetimos padrões de relacionamento baseados em dores psíquicas do passado, inclusive de nossa ancestralidade. Relações codependentes, marcadas pela posse e pela ausência de autonomia (“eu sou dono dela/dele”), simbolizam a tentativa desesperada de curar uma ferida narcísica primordial. O filme “História de um Casamento” ilustra a desintegração de um vínculo onde a autonomia se perdeu.
- Vício em Autoflagelação: A dor física pode ser usada para aliviar um sofrimento psíquico insuportável. O ato de se cortar ou se machucar é uma tentativa de dar um contorno a uma dor difusa e, paradoxalmente, uma forma de se punir por uma culpa inconsciente. O filme “Preciosa” mostra como a dor autoinfligida pode se tornar uma válvula de escape para traumas e rejeições profundas.
Conclusão: Rumo a uma Abordagem Integrada
A jornada pela compreensão das dependências nos leva da neurobiologia do cérebro ao inconsciente, da cultura à história familiar. As obras de Van Gogh (“Noite Estrelada”), que retratam a luta da mente contra a loucura, e de Picasso (“Les Demoiselles d’Avignon”), que exploram a luxúria e a objetificação, nos mostram que esses temas são universais e atemporais.
A teoria do Self de Heinz Kohut, que defende a existência de um narcisismo saudável e essencial para a coesão do eu, nos lembra que o objetivo não é erradicar o narcisismo, mas integrá-lo. A chave para o tratamento das dependências reside em uma abordagem que transcenda disciplinas. É preciso que psicanálise, neurociências, sociologia e outras áreas caminhem juntas, em uma perspectiva multidisciplinar e transversal, para tratar esse desafio complexo. Somente através desse diálogo podemos verdadeiramente ajudar o sujeito a sair do ciclo da repetição e a inscrever sua história em um novo registro, o da pulsão de vida.