Em nossa contínua exploração da sexualidade humana, abrimos um capítulo fundamental que nos convida a olhar para o nosso primeiro e mais íntimo território: o corpo. Este não é apenas um invólucro biológico, mas o palco onde se encenam nossas histórias, prazeres, dores e, crucialmente, a nossa relação com nós mesmos. A partir do tema Corpo, Imagem e Autoerotismo, investigaremos como a percepção que temos de nosso corpo influencia diretamente nossa capacidade de sentir prazer e como o autoerotismo emerge como uma ferramenta essencial de autoconhecimento e reconexão.
Como ponto de partida, a arte nos oferece uma lente sensível. A pintura “Le Sommeil” (O Sono, 1866) de Gustave Courbet, que retrata duas mulheres nuas dormindo em um abraço íntimo, foi censurada por séculos. Sua força provocativa não reside na nudez explícita, mas na naturalidade do afeto e do toque. Courbet nos afasta de um olhar voyeurístico para nos apresentar uma representação poética do amor e do desejo, onde o corpo é um lugar de conforto e entrega, estabelecendo o tom para nossa reflexão.
1. O Corpo Vivido vs. O Corpo Idealizado
Vivemos imersos em uma cultura que nos bombardeia com padrões estéticos irreais. Essa pressão cria uma cisão fundamental entre o corpo idealizado — aquele que almejamos, que vemos nas redes e na mídia — e o corpo vivido, o nosso corpo real, com suas marcas, histórias, sensações e emoções.
A psicanálise nos ensina que a qualidade da nossa vivência do prazer está diretamente ligada a essa relação. Quando o corpo é visto apenas como um objeto a ser corrigido ou exibido, a experiência erótica se empobrece. O autoerotismo, neste contexto, é resgatado não como um ato menor ou substituto, mas como um direito legítimo e um caminho de reconexão. É através do toque e da exploração de si que podemos começar a curar essa cisão e a habitar nosso corpo como um território de prazer, e não de vergonha.
2. A Estrutura Simbólica do Erótico: Lei, Desejo e Consentimento
A cena erótica, seja ela solitária ou compartilhada, nunca é um ato puramente instintivo. Para a psicanálise, ela é sempre uma reencenação da estrutura primordial que nos funda como sujeitos: a relação entre o Desejo e a Lei.
- O Paradoxo da Liberdade na Submissão: Práticas como as de BDSM, que envolvem dominação e submissão, ilustram perfeitamente esse conceito. A submissão consentida não é fragilidade. Pelo contrário, ela representa uma suspensão temporária do Ego, da nossa necessidade de controlar e performar. Ao confiar no outro e se entregar a um pacto simbólico, o sujeito pode experimentar uma forma paradoxal de liberdade e alívio, um “respiro” do excesso de autonomia da vida cotidiana.
- O Gozo e a Lei Simbólica: Como demonstra Lacan em seu texto “Kant com Sade”, o gozo mais radical e transgressor só se sustenta quando encontra um limite, uma Lei simbólica. A entrega desejada é potência; a imposta é trauma. É o consentimento, as regras negociadas (como as safe words), que transformam um ato potencialmente violento em um campo de elaboração psíquica. Investigar as motivações inconscientes por trás do desejo de dominar ou de se submeter permite que a prática erótica se torne um espaço de conhecimento, e não de repetição cega de padrões.
O filme “A Vênus das Peles” (2013), de Roman Polanski, explora magistralmente essa dinâmica. Através de um jogo de sedução e poder entre um diretor e uma atriz, a dominação e a submissão deixam de ser papéis fixos para se tornarem posições de linguagem, fluidas e intercambiáveis, revelando as fantasias e o investimento pulsional inconsciente de cada um.
3. A Clínica na Era Digital: Escuta Sem Moralismo
Na era da hiperconectividade, fetiches e fantasias ganham um palco global nas redes sociais. Curtidas validam, stories exibem e a ansiedade performática cresce. A clínica psicanalítica atua aqui como um radar sensível, cuja função não é julgar ou “curar” um fetiche, mas detectar o ponto exato onde a fantasia se tornou uma compulsão doentia, onde o prazer se transformou em uma prisão.
No divã, um chicote pode simbolizar um pai severo, uma mãe controladora ou simplesmente a curiosidade vibrante do desejo. O analista não arranca fetiches; ele escuta as histórias fantasmáticas que os sustentam, buscando devolver a escolha e a liberdade ao sujeito.
4. A Voz do “Calado”: Introdução à Demissexualidade
Para questionar a régua da “normalidade”, é vital dar voz a outras formas de experiência. A demissexualidade é um conceito que descreve pessoas que só experimentam atração sexual após construírem um forte laço afetivo, intelectual ou de confiança com alguém.
- O que a demissexualidade revela?
- Ela contesta a ideia de uma libido “automática” e universal, que responde primariamente ao impacto visual.
- Sugere que, para muitos, a excitação não nasce do corpo como objeto, mas do reconhecimento mútuo e da intimidade psíquica.
- Valida a experiência de que o desejo pode ter um tempo de maturação mais lento, nascendo da amizade e da conexão.
Produções culturais nos ajudam a compreender essa vivência. O livro “Ace”, de Angela Chen, o filme “Você Nem Imagina” (The Half of It) e o podcast “Sounds Fake But OK” são ferramentas valiosas que ilustram como a atração pode evoluir de forma gradual e profunda, longe dos roteiros convencionais.
Conclusão: Rumo a uma Compreensão Singular
Ao percorrer os temas do corpo, imagem e autoerotismo, fica claro que a psicanálise nos afasta de qualquer ideal de normalidade. Ela nos convida a ler nosso corpo como um texto, a entender o autoerotismo como um diálogo fundamental e a reconhecer a complexa gramática do nosso desejo.
Este capítulo, como os demais, é uma síntese que aponta para um universo muito mais vasto, detalhado no material base do curso. A verdadeira compreensão emerge de uma leitura calma e de uma reflexão corajosa sobre nossas próprias realidades. O convite está feito: pausar, ler e, principalmente, escutar as histórias que nosso próprio corpo tem para contar.