O Eco das Falhas Primordiais: A Visão Pós-Freudiana sobre o Vício e a Angústia Intersubjetiva

A sabedoria latina, com sua capacidade de condensar complexas verdades humanas, nos oferece um portal para a reflexão sobre os vícios. Sêneca nos alerta que “Avaritia est causa belli” (A avareza é a causa da guerra), nos fazendo ponderar como o desejo desmedido — seja por riqueza, poder ou uma substância — leva a consequências devastadoras. Em contraponto, a famosa máxima de Horácio, “Carpe diem, quam minimum credula postero” (Aproveite o dia, confie o mínimo possível no amanhã), que incentiva a viver o presente, pode se tornar uma armadilha no contexto do vício, onde o prazer imediato ignora e destrói o futuro. Essa tensão entre o desejo insaciável e a tirania do instante é o terreno que os psicanalistas pós-freudianos exploraram com profundidade. Se Freud nos deu o mapa do inconsciente, seus sucessores nos mostraram como as primeiras paisagens da vida — as relações primordiais — definem a topografia de nossas futuras dependências.

1. As Raízes Arcaicas da Dependência: O Legado de Klein, Winnicott e Lacan

A grande virada pós-freudiana foi deslocar o foco do conflito edípico para as fases mais arcaicas do desenvolvimento, entendendo o vício como um eco de falhas no cuidado primordial e na constituição do sujeito.

  • Melanie Klein e a Posição Esquizo-Paranoide: Klein nos ensina que, nos primeiros meses de vida, o bebê lida com a ansiedade através da cisão (splitting). O mundo é dividido de forma dicotômica: existe o “seio bom”, fonte de toda a gratificação, e o “seio mau”, fonte de toda a frustração. O vício, nesta ótica, é uma fixação ou regressão a essa posição esquizo-paranoide. O sujeito dependente não consegue tolerar a ambivalência do objeto real — que é, ao mesmo tempo, bom e mau. Ele busca na droga, no álcool ou no comportamento compulsivo um “seio bom” idealizado, um objeto que promete ser “tudo bom”, que não frustra. A recuperação, portanto, implica na dolorosa travessia para a “posição depressiva”, onde o sujeito finalmente consegue integrar os aspectos bons e maus do objeto (e de si mesmo), tolerando a ambivalência e a culpa reparatória.
  • D.W. Winnicott e a Falha no “Holding”: Para Winnicott, o vício é um sintoma de um “ambiente não favorável” e de uma falha no “holding” — a sustentação física e emocional oferecida pela figura materna. Onde faltou esse colo seguro que ampara e dá contorno ao self, resta um vazio, um terror de aniquilação. O vício surge como um “pedido urgente de holding”, uma busca desesperada por um “colo de fogo”: a substância ou o ato compulsivo oferecem um calor e um contorno que, embora artificiais e destrutivos, são a única forma de sustentação que o sujeito conhece para não se desintegrar.
  • Jacques Lacan e o Suplemento para o “Furo”: Lacan entende a dependência como a busca por um suplemento para o “furo no Outro”. A linguagem nos insere na ordem simbólica, mas nos “castra” de um gozo pleno e mítico. O vício é uma tentativa radical de escapar a essa falta estrutural, de encontrar um gozo que não seja mediado pela palavra. É uma tentativa de colar a linguagem ao corpo, de preencher o vazio com uma substância ou um ato que promete uma completude impossível. Somente a nomeação do desejo e a aceitação da “castração” simbólica — ou seja, aceitar que somos seres de falta — podem desarmar essa busca mortífera.

2. O Ego Estilhaçado: Dissociação e Fragmentação na Cultura e na Clínica

A música “Comfortably Numb” do Pink Floyd serve como uma ilustração poética e precisa do estado psíquico do adicto. A letra retrata a dissociação como uma defesa contra uma dor emocional insuportável (“a dor que você está sentindo”), os “elementos beta” (Bion) que o psiquismo não consegue metabolizar. A figura do “médico” que injeta o alívio químico remete ao desejo infantil por um objeto externo que cure magicamente todo o mal-estar. A “anestesia emocional” expressa na música — o “confortavelmente entorpecido” — é a meta do vício: a suspensão do sofrimento, mesmo que o preço seja um profundo vazio e a perda da própria identidade, um ego estilhaçado.

3. Os Palcos da Compulsão: Análises Culturais de Vícios Específicos

A articulação entre a teoria e a produção cultural nos permite aprofundar a compreensão das fantasias singulares por trás de cada tipo de vício.

  • Drogas Ilícitas e o Gozo que Mata: O filme “Réquiem para um Sonho”, de Darren Aronofsky, encarna a lógica lacaniana do gozo como sofrimento. A droga age como uma suplência à função paterna (o “Nome-do-Pai”), que deveria interditar o gozo e inserir o sujeito na lei simbólica. Na ausência dessa lei, o sujeito se entrega a uma busca por uma falsa completude, um gozo que se inscreve no corpo como pura destruição.
  • Workaholism e o Supereu Cruel: O excesso de produtividade, como visto em “À Procura da Felicidade”, pode ser uma defesa maníaca contra um sentimento de inutilidade ou culpa inconsciente. O trabalho se torna compulsivo, não criativo, e serve para aplacar um supereu cruel e perseguir um Ideal de Eu inatingível. O sofrimento é mascarado pela admiração social à “produtividade”.
  • Higiene e a Culpa Inconsciente: A limpeza exagerada, retratada no filme “Melhor é Impossível”, tenta purificar simbolicamente uma culpa inconsciente. Como apontou Sándor Ferenczi, trata-se de um ritual regressivo ligado à fase anal do desenvolvimento, onde o corpo se torna um campo de expiação e a limpeza uma tentativa de controlar um caos interno.

4. A Embriaguez dos Sentidos: O Vício no Diálogo Arquetípico da Arte

A luta contra o vício ressoa em arquétipos universais, que podemos explorar na triangulação entre pintura, mito e música.

  • A Transgressão e suas Consequências: A obra “A Queda do Homem” de Ticiano, que retrata a desobediência de Adão e Eva, dialoga com o mito da Caixa de Pandora. Em ambos, a curiosidade incontrolável — um tipo de vício — leva a uma transgressão que libera os males no mundo. O “Dies Irae” do Réquiem de Mozart, com sua intensidade dramática, reflete a seriedade do ato transgressor e a angústia diante do julgamento e da mortalidade.
  • A Intemperança e o Êxtase do Excesso: A pintura “Baco” de Caravaggio convida ao abandono e à embriaguez dos sentidos, encarnando o mito de Dionísio, o deus do vinho, do êxtase e do excesso. A música de Richard Wagner em “Tristão e Isolda”, com sua orquestração luxuriante e harmonias cromáticas que adiam a resolução, reflete perfeitamente essa busca por um prazer extremo, uma paixão que dissolve os limites do eu e que, em última instância, se revela fatal.

Conclusão: A Centralidade do Édipo e a Travessia para a Ambivalência

Ao final desta jornada pelos desenvolvimentos pós-freudianos, retornamos a um conceito freudiano central: o Complexo de Édipo. O drama edípico é a estrutura fundamental que organiza o desejo, a lei e a identidade. É a travessia que, se bem-sucedida, permite ao sujeito sair da fusão com a mãe, aceitar a interdição do pai e se inscrever na cultura. Mais importante, é o que permite a passagem da posição esquizo-paranóide (Klein), onde tudo é cindido em “bom” e “mau”, para a posição depressiva, onde se torna possível tolerar a ambivalência: o fato de que os objetos de amor são, ao mesmo tempo, fontes de prazer e de frustração.

O sujeito que se fixa na dependência é, em muitos aspectos, alguém que não conseguiu completar essa travessia. Ele permanece preso na lógica da cisão, buscando um objeto “totalmente bom” que o proteja da frustração e da falta. O trabalho analítico, portanto, é o de oferecer um espaço seguro para que essa travessia edípica e kleiniana possa ser, tardiamente e simbolicamente, refeita. É ajudar o sujeito a abandonar a busca por um paraíso sem frustração e a desenvolver a capacidade de tolerar a ambivalência da vida, encontrando um prazer que não precise mais ser um gozo mortífero, mas uma expressão criativa de um desejo que aceitou seus limites. A escuta do eco das falhas primordiais é o que permite, enfim, a construção de um futuro menos repetitivo e mais livre.

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