A escola é, por excelência, o palco social onde as diferenças de uma criança com TDAH se tornam mais visíveis e, frequentemente, mais problematizadas. É no confronto com a carteira, o horário e a demanda por atenção sustentada que a sua singularidade neurológica se choca com as expectativas de um sistema muitas vezes rígido e padronizador. O capítulo sobre orientação escolar do curso “Psicanálise e TDAH” nos convida a uma abordagem revolucionária, que desloca radicalmente o foco: a tese central é que a intervenção mais eficaz não visa a adaptação forçada da criança ao sistema, mas a transformação do sistema para que ele se torne mais flexível e acolhedor à diversidade.
Esta proposta implica em reinserir a escola no processo terapêutico, não como uma mera receptora de orientações, mas como uma instituição convocada a refletir sobre seu próprio papel na manifestação e na patologização dos sintomas. A psicanálise, neste contexto, não oferece um manual de “como lidar com o aluno com TDAH”, mas atua como uma força crítica que desafia a comunidade educativa a se repensar. Este artigo irá explorar esta abordagem em quatro eixos: primeiro, analisaremos a escola como um “campo de batalha” ideológico; segundo, subverteremos o conceito de “déficit de atenção” a partir do olhar de Simone Weil; terceiro, investigaremos como a “sociedade do espetáculo” impacta a identidade dos alunos; e, por fim, apresentaremos uma filosofia de cuidado baseada na aceitação radical e na adaptação proativa, defendendo uma capacitação docente que vá além da técnica e alcance uma verdadeira transformação do olhar.
1. O Campo de Batalha: A Escola entre a Reprodução e a Singularidade
Toda instituição escolar vive sob uma tensão fundamental, um verdadeiro “campo de batalha” ideológico. De um lado, há a pressão para adaptar a criança ao sistema: para formar cidadãos dóceis, trabalhadores produtivos, sujeitos que se encaixem nas engrenagens da sociedade tal como ela é. De outro, há o ideal de educar para a singularidade: para fomentar o pensamento crítico, a autonomia, a criatividade, o protagonismo. A educação, como nos lembra o curso, nunca é neutra: ela funciona ou como um “dispositivo de subjetivação criativa” ou como um “aparelho de destruição simbólica”.
A criança com TDAH, com sua dificuldade inata em se conformar, em seguir regras que não lhe fazem sentido e em suprimir sua energia vital, torna-se o epicentro deste conflito. Em uma escola focada na reprodução, sua diferença é rapidamente lida como “déficit”, “indisciplina” ou “doença”. A patologização de suas características e a emergência de dinâmicas de exclusão, como o bullying, são consequências quase inevitáveis. A proposta psicanalítica de orientação escolar começa, portanto, por convidar a comunidade de aprendizagem a tomar consciência deste campo de batalha. Não se trata de dizer à escola o que fazer, mas de criar uma consciência terapêutica interna, onde os educadores possam se perguntar: “Qual é a nossa missão? Estamos aqui para adestrar e normalizar, ou para despertar e potencializar a singularidade de cada um, inclusive e especialmente daquele que mais nos desafia?”.
2. O Déficit de Ser Atendido: A Inversão do Conceito de Atenção
A reflexão mais potente oferecida à escola é, talvez, a inversão do problema da atenção, inspirada na filósofa Simone Weil, para quem “a atenção é a forma mais rara e mais pura da generosidade”. O curso nos lança a pergunta incômoda: “Quantas crianças foram diagnosticadas com déficit de atenção quando, na verdade, sofriam de um déficit de serem atendidas?”.
Esta perspectiva desloca o problema do cérebro da criança para a qualidade da relação pedagógica. O olhar do educador não é um ato passivo de observação; é um ato potente que constitui o sujeito. Uma atenção genuína, inteira e generosa por parte do professor tem o poder de “criar” um aluno, de validá-lo em sua existência, de espelhar sua potência e de convidá-lo a se conectar com o saber. Por outro lado, um olhar apressado, rotulador, impaciente ou distraído pode “destruir” um sujeito, confirmando sua crença de que ele é inadequado, problemático ou invisível.
A capacitação dos professores, nesta ótica, transcende as estratégias pedagógicas. Ela se torna um trabalho de desenvolvimento de uma sensibilidade para a escuta clínica. Trata-se de treinar o educador a ver, por trás da agitação, um mal-estar; por trás da desatenção, um apelo. O “kit de orientação” se transforma em um “lembrete ético” de que a ferramenta mais poderosa na sala de aula não é a lousa digital ou o método de ensino, mas a qualidade da presença humana que o professor é capaz de oferecer.
3. A Sociedade do Espetáculo na Sala de Aula: Da Palavra à Imagem
Para compreender a criança de hoje, é preciso compreender o mundo em que ela vive. O curso nos apresenta uma crítica sofisticada da nossa estrutura social, a “sociedade do espetáculo”, marcada por uma “migração do registro simbólico para uma hipertrofia do imaginário”.
- O Registro Simbólico é o campo da palavra, da história, da lei, da profundidade, do sentido que se constrói ao longo do tempo.
- O Registro Imaginário é o campo da imagem, da aparência, da performance, da gratificação instantânea.
Nossa cultura, saturada de redes sociais e estímulos visuais, valoriza cada vez mais o imaginário em detrimento do simbólico. Isso forja o que o curso chama de “filhos da aparência”, crianças cuja identidade se constrói não a partir de uma narrativa interna sólida, mas na “volatilidade de uma performance em constante julgamento”. O imperativo categórico da nossa era é: “Performarás!”. Você deve ter bom desempenho, ser popular, parecer feliz, produzir resultados.
A criança com TDAH é particularmente vulnerável nesta cultura. Sua dificuldade com as funções executivas torna a tarefa de manter essa performance constante algo hercúleo e exaustivo. A proposta clínica, então, não é uma recusa nostálgica da imagem, mas a aposta na necessidade de uma “alfabetização simbólica para a era visual”. A escola e a terapia devem se tornar espaços onde a criança aprende a “ler” criticamente o mundo das imagens, a construir uma narrativa própria que não dependa da validação externa e a encontrar valor em sua história e em sua palavra, e não apenas em sua aparência.
4. Uma Filosofia para Viver Melhor: Aceitação Radical e Adaptação Proativa
Em diálogo com a complexidade da psicanálise, o curso introduz a filosofia revolucionária e pragmática de Pascale de Coster, que rompe com a “cultura da produtividade tóxica” (hustle culture). Esta abordagem, fundamental para adultos com TDAH mas perfeitamente aplicável à orientação escolar, se baseia em dois pilares:
- Aceitação Radical: Significa aceitar a realidade neurobiológica sem vergonha ou julgamento. Em vez de lutar contra o cérebro que se tem, aprende-se a compreendê-lo. Para a escola, isso significa aceitar que um aluno com TDAH realmente funciona de maneira diferente, e que isso não é uma falha moral.
- Adaptação Proativa: A partir da aceitação, o foco se volta para a adaptação. Em vez de forçar o indivíduo a se encaixar no sistema, a pergunta se torna: “Como podemos adaptar o sistema (as tarefas, os prazos, o ambiente físico) para que este cérebro possa prosperar?”.
A ferramenta que sustenta esses dois pilares é a autocompaixão, que funciona como o principal instrumento de regulação emocional. Para o aluno, isso implica em um processo de “luto pela fantasia da pessoa normal”. É o doloroso, mas necessário, abandono da busca obsessiva por uma “otimização” que o iguale aos outros, em favor de um caminho sustentável para um bem-estar genuíno, que respeite sua singularidade. Para a escola, é o luto pela fantasia da “classe homogênea e normal”, abrindo-se para a riqueza e o desafio da neurodiversidade.
Conclusão: Da Capacitação Docente à Transformação da Cultura Escolar
A orientação escolar na perspectiva da psicanálise é, em última análise, um chamado para uma profunda transformação. Ela começa com a capacitação docente, não para aplicar técnicas, mas para desenvolver uma escuta sensível e um olhar que constitui, em vez de rotular. Mas ela não pode parar aí.
A verdadeira mudança exige a ressignificação do sistema. A escola é convocada a refletir sobre sua própria razão de ser. Ela existe para servir ao mercado de trabalho ou para formar cidadãos? Para impor uma confissão religiosa ou para despertar a singularidade? Para ajustar ou para libertar? Ao se deparar com o desafio do TDAH, a instituição é confrontada com sua própria alma. A escolha é entre continuar a ser um aparelho de “destruição simbólica” que patologiza a diferença, ou se tornar um verdadeiro ecossistema de aprendizagem, um lugar onde a singularidade não é apenas tolerada, mas celebrada como a maior riqueza que a humanidade possui.