Após uma jornada pelos fundamentos, diagnósticos e a travessia adolescente, o curso “Psicanálise e TDAH” nos conduz à sua proposta mais radical e, talvez, mais transformadora: a intervenção com os pais. Longe de ser um apêndice do tratamento infantil, este capítulo posiciona o trabalho com a parentalidade como o epicentro da cura. A tese, de uma força avassaladora, é a de que o sintoma da criança fala fundamentalmente sobre o desejo, a história e o sofrimento não elaborado de seus pais. A intervenção psicanalítica, portanto, deixa de ser um manual de instruções para se tornar um “convite corajoso”: um chamado para que os pais saiam da posição de “treinadores” de um filho “defeituoso” para se tornarem, eles mesmos, sujeitos de sua própria análise.
Este artigo propõe-se a desvendar as camadas desta abordagem desafiadora. Mergulharemos na potente metáfora do sintoma infantil como um “espelho inquieto” que reflete as feridas da alma parental. Investigaremos, à luz da psicologia junguiana e da psicanálise transgeracional, como a “vida não vivida” dos pais é inconscientemente delegada aos filhos, manifestando-se como agitação e desatenção. E, por fim, em um diálogo crítico com a história da medicalização e as novas perspectivas da neurodiversidade, defenderemos a premissa central de que a mudança real da criança está, em última instância, condicionada à retificação subjetiva dos pais — à corajosa reinvenção de seu próprio lugar no mundo para que, só então, o filho possa encontrar o seu.
O Espelho Inquieto: Quando a Criança se Torna o Sintoma dos Pais
A perspectiva psicanalítica opera um deslocamento sísmico do olhar. Enquanto a prática clínica tradicional foca obsessivamente na criança, ignoramos de modo sistemático que ela é, muitas vezes, apenas a “porta-voz” de um sofrimento familiar que ainda não encontrou palavras. A criança, com sua sensibilidade e sua dependência do ambiente, funciona como um espelho inquieto: ela reflete, em seu corpo e em seu comportamento, as fissuras, as tensões e as feridas não elaboradas da alma de seus pais e da dinâmica familiar.
A pergunta “Quantas vezes medicamos a criança quando deveríamos tratar os pais?” não é uma provocação retórica, mas um diagnóstico clínico. A hiperatividade de um filho pode ser o eco da ansiedade não confessada de uma mãe; sua desatenção, o reflexo do desinvestimento afetivo de um pai; sua oposição, a encenação de um conflito conjugal silenciado. A criança, neste cenário, torna-se o depositário das angústias que os adultos não conseguem suportar em si mesmos. Tratar o sintoma da criança de forma isolada, sem olhar para o que ele espelha, é como polir incessantemente o reflexo distorcido sem jamais consertar o espelho quebrado. A transformação só acontece quando os pais encontram a coragem para questionar sua própria participação na dinâmica que produz o sofrimento.
A Herança dos Fantasmas: A Vida Não Vivida dos Pais
Para compreender o que este espelho reflete, a psicanálise nos convida a uma escavação arqueológica na história dos pais. A abordagem junguiana, evocada no curso, nos oferece o conceito crucial da “vida não vivida”: os sonhos abandonados, os talentos não expressos, os lutos não chorados, os desejos reprimidos dos pais. Esta energia vital não desaparece; ela permanece no inconsciente familiar como um “fantasma” que busca expressão.
De forma trágica e inconsciente, esta “vida não vivida” é frequentemente delegada ao filho. A criança, como uma tela em branco, torna-se o projeto no qual os pais depositam seus próprios fracassos e esperanças. A “hiperatividade infantil”, neste contexto, pode ser o “grito desesperado de uma energia vital que nunca encontrou expressão na geração anterior”. O filho se agita para viver a intensidade que o pai reprimiu; ele se dispersa em mil interesses para realizar os sonhos que a mãe abandonou. Ele é incumbido de um mandato impossível: ser, ao mesmo tempo, a reparação do passado dos pais e a garantia de seu futuro.
O trabalho de escavação com os pais busca criar um espaço onde eles possam falar de seus próprios “sonhos soterrados” e “feridas silenciosas” sem julgamento. Quando os pais começam a se reapropriar conscientemente de suas vidas não vividas — seja retomando um hobby, elaborando um luto antigo ou questionando suas escolhas profissionais —, eles liberam o filho de um fardo insuportável. Ao começarem a viver por si mesmos, permitem que o filho, finalmente, possa viver a sua própria vida.
A Subversão da Escuta: De Treinadores a Sujeitos em Análise
Esta compreensão leva a uma distinção radical na prática. O modelo de “treinamento de pais”, focado em técnicas de manejo de comportamento, embora possa oferecer algum alívio superficial, parte da premissa de que o problema está na criança e que os pais são os agentes de sua correção. A psicanálise subverte essa lógica.
A proposta é a oferta de um espaço de escuta para a angústia parental. O foco se desloca da criança para o sofrimento dos pais. Em vez de perguntar “O que fazer com o seu filho?”, o analista pergunta “Como o sintoma do seu filho afeta você? O que ele desperta em sua própria história?”. Este convite corajoso para que os pais saiam da posição de “treinadores” e se tornem “sujeitos da própria análise” é a condição para a mudança real.
É neste espaço que a retificação subjetiva pode ocorrer. “Retificação subjetiva” significa a mudança na posição inconsciente dos pais em relação à sua história, aos seus desejos e ao seu filho. Significa desarmar o circuito de culpa e frustração, compreender como seus conflitos se entrelaçam com os sintomas do filho e, a partir daí, reinventar seu lugar. Quando os pais mudam sua posição interna, eles se tornam o “ambiente facilitador” que a criança precisa para florescer. A tese é inequívoca: a criança só pode encontrar um novo lugar no mundo se os pais estiverem dispostos a rever o seu próprio lugar.
Contexto Crítico: A Invenção do Diagnóstico e a Revolução da Neurodiversidade
Para sustentar essa clínica desafiadora, é preciso um olhar crítico sobre o próprio diagnóstico de TDAH. O curso nos apresenta a história do transtorno não como uma descoberta científica linear, mas como uma “engenharia social”. O “paradoxo do Benzedrine”, onde o tratamento com anfetaminas (descoberto nos anos 1930) precedeu em décadas a criação da categoria diagnóstica, revela que, muitas vezes, “criamos diagnósticos para justificar tratamentos já existentes”, invertendo perigosamente a lógica médica. Essa história nos ensina a questionar a suposta neutralidade do diagnóstico e a investigar como ele é construído por ansiedades sociais, interesses econômicos e decisões políticas.
No entanto, uma crítica madura não pode cair no negacionismo. Por isso, o diálogo com a perspectiva da neurodiversidade, representada por obras como “TDAH 2.0”, é fundamental. Esta abordagem, em vez de descartar a neurobiologia, a ressignifica.
- De Déficit a VAST (Variable Attention Stimulus Trait): O conceito de “traço de atenção variável a estímulos” substitui a linguagem patológica do “déficit”. Ele reconhece que o problema não é a falta de atenção, mas uma atenção que funciona de maneira diferente, prosperando sob estímulos de interesse, desafio e novidade.
- Estratégias Adaptativas: Esta compreensão leva a um arsenal terapêutico integrado, que inclui o exercício físico como “medicação natural”, a adaptação do ambiente à pessoa (e não o contrário) e a busca por carreiras alinhadas com a neurobiologia individual.
- A Libertação da Vergonha Tóxica: Talvez o ponto mais crucial desta abordagem seja o foco na libertação da “vergonha tóxica” associada ao diagnóstico. Este objetivo psicológico se alinha perfeitamente com a busca psicanalítica por aliviar o sofrimento do Superego e permitir que o sujeito se reconcilie consigo mesmo.
Conclusão: A Reivenção da Linguagem, a Libertação dos Desejos
A intervenção com os pais na clínica do TDAH é, em última análise, um trabalho sobre a linguagem e o desejo. É ajudar uma família a reinventar a linguagem com a qual narra sua própria história, saindo dos roteiros repetitivos e dos mandatos impossíveis. É um processo de elaboração que libera tanto os pais quanto os filhos das dinâmicas que os aprisionam, permitindo o encontro com seus desejos mais autênticos.
O caminho é desafiador. Exige que os profissionais e, principalmente, os pais, tenham a coragem de olhar para o “espelho inquieto”, de confrontar seus próprios fantasmas e de se responsabilizarem pela sua parte na trama do sofrimento. Mas é um caminho de profunda libertação. Ao tratar a si mesmos, os pais oferecem aos seus filhos o maior presente que poderiam dar: a liberdade de não precisar ser o sintoma de ninguém, mas de poder ser, simplesmente e maravilhosamente, o autor de sua própria e singular jornada.