O Mal-Estar na Pós-Modernidade: Um Roteiro Psicanalítico pelos Teóricos do Vazio Simbólico

Introdução: Uma Releitura do Lobo

A célebre e sombria sentença de Thomas Hobbes, Homo homini lupus est — “o homem é o lobo do homem” —, ecoa através dos séculos, tradicionalmente interpretada como um retrato da natureza humana em seu estado mais primitivo: uma guerra de todos contra todos, contida apenas pela força de um contrato social, o Leviatã. Contudo, a psicanálise, em sua incansável escuta do sofrimento psíquico, nos convida a uma releitura radical desta máxima. E se o lobo não for apenas o outro, o rival externo na disputa pela sobrevivência? E se a alcateia mais perigosa for aquela que habita dentro de cada um de nós?

Este artigo propõe-se a explorar as manifestações dos distúrbios contemporâneos a partir desta premissa psicanalítica. O “lobo” é a metáfora precisa para a matilha de pulsões que constitui o sujeito, uma força voraz e incessante que, na ausência de mediação, ameaça devorar o próprio laço social que nos humaniza. Argumentaremos que a crise atual, marcada por uma proliferação de quadros de ansiedade, depressão, pânico e compulsões, está intrinsecamente ligada ao que a teoria lacaniana descreve como o “declínio do simbólico” ou a “evaporação do Pai”. Veremos como a dissolução das instâncias tradicionais de autoridade e lei abriu clareiras em nossa paisagem psíquica, criando novas selvas — notadamente a arena digital e o mercado corporativo — onde este lobo interior, agora desamparado e sem rédeas, volta a caçar, gerando novas e dolorosas formas de mal-estar. Para nos guiar nesta selva, convocamos um “time” de teóricos da psicanálise contemporânea, cujas obras funcionam como bússolas para decifrar a complexidade do nosso tempo.

Parte I: O Diagnóstico do Sujeito Contemporâneo

A primeira tarefa da psicanálise é diagnosticar a forma como o sofrimento se apresenta em cada época. Os teóricos a seguir nos ajudam a compreender a nova subjetividade que emerge na cultura da performance e do espetáculo.

  • Joel Birman é uma referência indispensável para entender a mutação do mal-estar. Em obras como “O Sujeito na Contemporaneidade”, Birman diagnostica com precisão a transição de um sofrimento baseado na culpa e no conflito (a neurose clássica, edípica) para um mal-estar centrado na vergonha, na insuficiência e no vazio. O sujeito de hoje não sofre tanto por ter transgredido uma lei, mas por não conseguir atingir um ideal de performance impossível. É a passagem do dever para o sucesso, uma mudança que produz as patologias narcísicas, a exaustão e a depressão como sintomas centrais.
  • Christopher Bollas, com sua linguagem poética e clinicamente densa, nos leva ainda mais fundo, às fundações pré-verbais da psique. Em obras como “A Sombra do Objeto” e “Melancolia de Inverno”, ele explora como nossa identidade é moldada pelo “conhecido não pensado” – um saber afetivo e atmosférico adquirido nas primeiras relações. Para Bollas, a depressão contemporânea é frequentemente uma melancolia causada pelo colapso dos “idiomas comuns”, as narrativas culturais compartilhadas que davam sentido e continência ao eu. Em um mundo que perdeu suas bússolas coletivas, o sujeito adoece por uma crise de sentido.
  • Hans-Joachim Maaz nos oferece um conceito contundente para entender a patologia da adaptação: a “normopatia”. Trata-se da patologia da normalidade excessiva, a compulsão para se conformar às expectativas sociais a ponto de perder totalmente o contato consigo mesmo. Maaz argumenta radicalmente que, em uma sociedade doente, a “normalidade” pode ser a pior das patologias, uma defesa psíquica que nos protege do conflito, mas ao custo de uma vida inautêntica e de um profundo vazio interior.

Parte II: A Crise da Lei e a Evaporação do Pai

Se a forma do sofrimento mudou, é porque a estrutura que organizava o mundo psíquico sofreu um abalo sísmico. Este bloco de teóricos analisa a causa estrutural da crise: o declínio da função paterna e da ordem simbólica.

  • Massimo Recalcati é talvez a voz mais influente na análise deste fenômeno. Sua tese sobre a “evaporação do Pai” é a chave de leitura para a epidemia de angústia e pânico. Para Recalcati, a ausência de uma instância simbólica que imponha limites e nomeie o desejo deixa o sujeito contemporâneo à deriva, confrontado com uma liberdade angustiante e um excesso de gozo que ele não consegue metabolizar.
  • Paul Verhaeghe, em obras como “A Autoridade”, demonstra sistematicamente como a lógica do mercado e o poder gerencialista substituíram a antiga autoridade simbólica. O poder hoje não se baseia mais na confiança e no saber, mas no controle e nas métricas de performance. Essa mutação, segundo ele, corrói as fundações do laço social e da identidade, gerando incerteza, ansiedade e depressão.
  • Luigi Zoja, por sua vez, oferece uma perspectiva histórica e arquetípica monumental para este “desaparecimento do pai”. Sua obra é uma genealogia que mostra como a paternidade é uma construção cultural frágil, e como seu declínio abre espaço para o surgimento de distúrbios sociais como a violência juvenil e as adições em massa, sintomas de um mundo sem uma figura de mediação e de lei.
  • Jean-Pierre Lebrun complementa este quadro ao analisar a ascensão do ódio como um sintoma direto do declínio do “Outro simbólico”. Sem a figura do terceiro mediador (a Lei) para arbitrar os conflitos, as relações se tornam puramente imaginárias e especulares. O outro não é mais um interlocutor, mas um rival a ser aniquilado, o que explica a estrutura da polarização e da intolerância política que definem nosso tempo.

Parte III: As Patologias do Laço Social

A crise do simbólico se manifesta concretamente na forma como nos relacionamos. Os teóricos a seguir focam nas patologias do laço social que emergem neste novo cenário.

  • Christian Dunker, em “Mal-estar, Sofrimento e Sintoma”, oferece uma psicopatologia crítica da realidade brasileira. Ele politiza a clínica ao afirmar que sintomas como o pânico e a depressão não são meras falhas individuais, mas patologias do laço social, formas de sofrimento que denunciam as contradições e os impasses da nossa cultura.
  • Jorge Alemán, em “Solidão: Comum”, resgata a solidão do campo da psicopatologia individual. Para ele, a solidão não é uma doença a ser curada, mas uma condição estrutural e inerradicável do ser humano na contemporaneidade. Ele propõe transformar essa solidão comum em uma potente categoria para pensar uma nova política de emancipação.
  • Roland Gori, com “A Fábrica de Impostores”, faz um diagnóstico implacável de como a lógica neoliberal ataca a alma do trabalho. A sociedade de avaliação, governada pela norma gerencialista, produz uma cultura de inautenticidade, onde todos são forçados a performar e a se vender, transformando a vida profissional em um palco de impostura.
  • Renata Salecl desconstrói um dos maiores mitos contemporâneos: a liberdade de escolha. Ela argumenta que a ideologia neoliberal transformou a escolha em uma obrigação tirânica. A necessidade constante de escolher (a carreira, o parceiro, o plano de saúde, a si mesmo) gera uma angústia paralisante e uma culpa incessante, revelando a liberdade como um sofisticado dispositivo de produção de sofrimento.

Parte IV: A Clínica como Ato de Resistência

Diante deste cenário, como se posiciona a clínica psicanalítica? Os autores finais nos oferecem uma visão da psicanálise como um ato de resistência, uma práxis que busca criar ilhas de sentido em um oceano de desorientação.

  • Darian Leader, ao analisar a insônia, transforma uma queixa cotidiana em um profundo diagnóstico do mal-estar. A insônia, para ele, é um sintoma cultural, um protesto da psique contra uma sociedade 24/7 que não permite o descanso, a pausa, o desligamento.
  • Dania Mier, com sua proposta de um “lirismo da mente”, expande as fronteiras da escuta psicanalítica para os territórios do indizível, especialmente no tratamento de traumas extremos onde a fala narrativa falha, propondo uma clínica poética e inovadora.
  • Per-Magnus Johansson defende o “pensamento lento” da psicanálise como um ato de resistência à cultura das soluções rápidas e superficiais, reafirmando sua relevância ética em um mundo acelerado.
  • Vicente Palomera atualiza a teoria lacaniana sobre as adições, mostrando-as não como um vício moral, mas como uma solução trágica e desesperada para lidar com um excesso de gozo insuportável, o sintoma paradigmático de nossa época.
  • Nicos Sidéris nos lembra que o sintoma infantil não é uma doença da criança, mas um apelo que denuncia uma crise na função parental, em uma intervenção corajosa que devolve a responsabilidade ao mundo adulto.
  • Sidi Askofaré nos oferece um mapa para navegar os desafios da subjetividade na era digital, analisando a identidade como uma “extimidade” (uma intimidade exposta) e o avatar como um segundo eu.

Conclusão: Uma Canção Menos Solitária

Este impressionante mosaico de pensadores nos oferece um diagnóstico multifacetado e profundo do nosso tempo. Eles nos mostram as ruínas de uma ordem simbólica e as novas formas de sofrimento que brotam nesses escombros. E, no entanto, em cada uma de suas obras, ressoa uma aposta na palavra e na escuta.

Afinal, por que ler e aprender psicanálise hoje? Porque, como nos lembra o texto de abertura do nosso curso, a psicanálise nos convida a uma jornada radical: a de escutar e se tornar responsável pelo próprio desejo. Em um mundo que nos empurra para a conformidade dos avatares e a eficiência das máquinas, ela reafirma a aposta no sujeito do inconsciente. A proposta da psicanálise não é matar o lobo interior, mas talvez, por meio da palavra, escutar o seu uivo e ensiná-lo a cantar uma canção menos solitária. E este, na era da solidão comum, é o ato de resistência mais necessário e mais esperançoso de todos.

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