Introdução: A Coragem de Confrontar os Novos Fantasmas
Meus caríssimos cursistas, parceiros de jornada,
À medida que nos aproximamos do final de nossa travessia pelo curso “Psicanálise e Medos”, somos convocados a confrontar dois dos fantasmas mais potentes e assustadores de nosso tempo: a xenofobia e o terror climático. Estes não são medos abstratos; são realidades viscerais que moldam nossas políticas, envenenam nossos laços sociais e se infiltram em nossa psique, gerando angústia, insegurança e desolação. A existência, como nos lembra a sabedoria antiga, implica em confronto. E hoje, o confronto mais urgente é com esses medos globais que ameaçam não apenas nossa segurança, mas nossa própria humanidade.
Nossa exploração será guiada por duas máximas que nos incitam à resiliência. A primeira, “Fortitudine vincimus” (Com fortaleza vencemos), nos ensina que a tenacidade, a capacidade de resistir mais do que atacar, já é um triunfo sobre a ameaça que busca nos paralisar. A segunda, “Vivere militare est” (Viver é combater), nos recorda que a existência é uma luta constante, e que aceitar essa condição transforma o medo crônico em uma vigilância lúcida, uma verdadeira arte de viver. Este artigo se propõe a ser um ato de fortalecimento, uma análise psicanalítica profunda para desvelar as raízes inconscientes da xenofobia e do terror climático, buscando caminhos para que a psicanálise, como prática ética, possa nos ajudar a transformar o medo em responsabilidade e a desolação em ação.
## A Conexão Psicanalítica: A Identificação Projetiva e a Genealogia do Medo
Para compreender como o medo do “outro” (o estrangeiro) e o medo do “mundo” (o colapso climático) se instalam em nossa psique, a psicanálise nos oferece uma ferramenta conceitual de imensa precisão: a identificação projetiva, um mecanismo de defesa primitivo descrito por Melanie Klein.
- O Mecanismo da Identificação Projetiva: Klein descreveu este como um processo inconsciente onde partes indesejadas do próprio ego — sentimentos, fantasias, impulsos agressivos — são clivadas (divididas) e projetadas para fora, em um objeto externo (uma pessoa ou grupo). Este outro, então, passa a ser percebido como contendo esses aspectos maus e é tratado de forma a justificar a projeção. Não se trata de uma simples projeção; na identificação projetiva, há uma tentativa de controlar o outro para que ele se comporte de acordo com o que foi projetado nele.
- A Xenofobia como Identificação Projetiva: A xenofobia é a manifestação social perfeita deste mecanismo. O sujeito ou o grupo, incapaz de lidar com suas próprias inseguranças, frustrações e agressividade, projeta esses sentimentos no estrangeiro. O “outro” se torna o depositário de tudo o que é mau e ameaçador. Ele é visto como “invasor”, “perigoso”, “preguiçoso”, “ladrão de empregos” — não porque ele seja isso, mas porque ele foi forçado a encarnar as partes sombrias que a cultura local se recusa a reconhecer em si mesma. O medo do estrangeiro é, no fundo, o medo de si mesmo.
- A Genealogia Psíquica dos Medos Globais: A psicanálise nos permite traçar uma genealogia, uma origem psíquica para os grandes medos que nos assolam. Esses medos não surgem do nada; eles são herdeiros de traumas e ansiedades históricas:
- Medo da Guerra Nuclear: Legado da Guerra Fria, é o medo do desconhecido e da aniquilação total.
- Medo de Pandemias: Reativado pela COVID-19, é o medo da doença, do isolamento e da fragilidade do corpo.
- Medo das Mudanças Climáticas: O medo da impotência diante das forças da natureza, agravado pela consciência de nossa própria responsabilidade.
- Medo da Desigualdade Social: O medo da injustiça, da instabilidade e da violência que brota da disparidade.
- Medo da Perda da Identidade Cultural: O medo da diluição das tradições diante da globalização e da migração.
O terror climático e a xenofobia, como explorado por Jean-Claude Rolland, são os fantasmas contemporâneos que se alimentam dessa genealogia, amplificados pelo bombardeio do terrorismo midiático. O impacto sobre o vínculo analítico é direto: o analista precisa acolher e interpretar essas projeções massivas para que a desfiliação social, o medo do outro, possa ser trabalhada na segurança do setting.
## A Sensibilização: Nenhum Homem é uma Ilha
Em um mundo onde as fronteiras se elevam e o medo tenta nos isolar, a sabedoria do poeta John Donne ecoa com urgência: “Nenhum homem é uma ilha”. Esta verdade poética é o antídoto mais potente contra a xenofobia e a apatia diante da crise climática. Ela nos lembra da nossa interconexão intrínseca, tanto com a humanidade quanto com o planeta.
- A Xenofobia e a Negação da Interdependência: O discurso xenófobo é uma tentativa desesperada de negar essa verdade. Ele cria uma fantasia de uma “ilha” pura e autossuficiente, onde o “estrangeiro” é a contaminação. Morar em uma ilha real, como Florianópolis, pode intensificar essa percepção: a geografia se inscreve na psique, criando uma mentalidade que pode, paradoxalmente, se fechar em si mesma. A psicanálise, ao contrário, trabalha para desconstruir essas fronteiras imaginárias, mostrando que o “outro” que tememos é, na verdade, uma parte de nós mesmos que não ousamos reconhecer.
- O Terror Climático e a Casa Comum: A crise climática destrói a fantasia da ilha de forma ainda mais brutal. O derretimento do gelo, como na instalação artística “Ice Watch” de Olafur Eliasson, não é um problema “deles”, dos ursos polares. É um sintoma que afeta a todos, pois a Terra é nossa casa comum. O sofrimento dos gaúchos desabrigados pelas enchentes não é um problema regional; é um prenúncio do que aguarda a todos nós se não agirmos. O terror climático nos força a reconhecer nossa dependência radical do ecossistema.
Nesse cenário, a psicanálise se posiciona como uma ferramenta de esperança, traçando a genealogia desses medos para desvelar as raízes inconscientes que os alimentam e permitindo a transformação do medo paralisante em ação responsável.
## Os Conceitos em Foco: Desconstruindo os Fantasmas Clínicos
Aprofundando a análise, podemos utilizar conceitos psicanalíticos para esmiuçar a estrutura desses novos fantasmas.
- Xenofobia como Fantasma Clínico (Salman Akhtar): O psicanalista Salman Akhtar nos ajuda a ver a xenofobia não apenas como um preconceito social, mas como um sintoma que se manifesta no psíquico através de desconfiança irracional e da projeção de raivas em minorias. É chocante como o medo do desconhecido se reveste de “razões” para defender o eu de ansiedades internas, reativando fobias infantis de exclusão e contaminação.
- O Colapso Ambiental e a Desintegração Psíquica: A ameaça do colapso ambiental é um dos medos mais impactantes da atualidade. Ele ativa fantasias primitivas de desintegração, gerando sintomas como impotência, melancolia e uma paralisia diante da magnitude da ameaça. A função da psicanálise, aqui, é ajudar a identificar essa angústia, permitindo sua transformação em ação consciente, recolocando o desejo e a esperança no lugar da paralisia.
- As Formações de Sintoma como Eco do Social: A ansiedade generalizada, as fobias sociais e a depressão profunda que vemos na clínica hoje não são apenas dramas individuais. Elas carregam as marcas do social e do político. A psicanálise precisa ir às ruas, sair do divã, para entender como o sofrimento global se inscreve na singularidade de cada sujeito.
## O Diálogo Cultural: Metáforas da Violência, da Impotência e do Caos
A cultura nos oferece espelhos para refletir sobre a brutalidade e o trauma coletivo que alimentam nossos medos.
- “O Barco dos Imigrantes” (Frida Kahlo): Embora o tema principal de Frida fosse seu próprio sofrimento, sua obra está impregnada da temática do deslocamento, da dor e da busca por identidade. Suas imagens de fronteiras e de um corpo fragmentado dialogam diretamente com a experiência do imigrante e com a angústia da xenofobia.
- “O 3 de Maio de 1808” (Francisco de Goya): A pintura de Goya, que retrata a execução de civis, é um manifesto sobre o impacto visceral da violência. Ela gera no espectador um contágio de desamparo, um trauma vicário que nos transporta para a cena do horror e nos força a confrontar a brutalidade de que o ser humano é capaz.
- O Mito de Cassandra: A sacerdotisa amaldiçoada a prever a desgraça sem nunca ser acreditada é a personificação do cientista climático, do ativista ambiental, do intelectual crítico. Ela simboliza a impotência e a angústia de quem é bombardeado por informações sobre catástrofes iminentes sem conseguir mobilizar a ação coletiva ou ser ouvido pela sociedade em negação.
- O Mito de Deucalião e Pirra: A versão grega do dilúvio universal representa o terror da catástrofe ambiental. A inundação total simboliza o colapso e a aniquilação, ativando medos primitivos de destruição. O mito, ao incluir a punição divina e o recomeço, funciona como uma forma de elaborar o pavor da impotência diante das forças da natureza.
- “A Sagração da Primavera” (Igor Stravinsky): A música de Stravinsky, com seus ritmos selvagens, suas dissonâncias chocantes e sua sensação de caos primordial, é a trilha sonora perfeita para o terror climático. Ela evoca uma natureza indomável, ameaçadora, que desafia a ordem e a razão. Ouvir a obra na perspectiva da crise ambiental é uma experiência de imersão na angústia diante de forças avassaladoras.
Conclusão: A Fortaleza da Ação e a Reconstrução do Laço
A experiência do trauma vicário e a exposição ao terrorismo midiático revelam a permeabilidade de nossa psique ao sofrimento global. A xenofobia e o terror climático são os fantasmas que nascem dessa permeabilidade, onde o horror mediado desorganiza nosso mundo interno e fragiliza o laço social.
Diante disso, a psicanálise nos convoca a uma postura ativa. Não basta ser bom se os bons não se organizam por uma causa. A tarefa é desconstruir para reconstruir. Desconstruir os preconceitos, as narrativas de medo e a lógica da exclusão. E reconstruir novas relações, baseadas no reconhecimento da nossa mútua vulnerabilidade e da nossa interdependência radical. A psicanálise, ao nomear essas formações de sintoma e ao oferecer um lugar para a elaboração do impacto da violência simbólica, se torna um locus para a reinscrição da subjetividade e para a reativação da pulsão de vida. Em um mundo que parece sitiado pelo medo, a clínica psicanalítica se afirma como um campo de resistência, um espaço onde a esperança e o desejo podem ser, teimosamente, cultivados.