O Sintoma Revisitado: Das Feridas Primordiais à Precariedade dos Vínculos na Era da Deslealdade

Introdução: A Conclusão de uma Jornada ao Coração do Vínculo

Chegamos, com um misto de satisfação e saudade, ao encerramento de nossa jornada reflexiva pelo curso “Psicanálise, Traição e Autossabotagem”. Após percorrermos os labirintos da solidão, da performance, do luto e da reparação, os capítulos finais, dezenove e vinte, nos oferecem a síntese definitiva. Eles conectam os dois extremos do fio analítico: a história mais arcaica e singular do sujeito e o mal-estar mais atual e coletivo da nossa civilização. A traição, que desde o início propusemos entender não como um pecado, mas como um sintoma, revela aqui sua dupla face: é o eco de uma tragédia infantil e, ao mesmo tempo, a expressão de uma fragilidade estrutural dos laços contemporâneos.

Nesta conclusão, somos guiados por duas análises penetrantes. No capítulo dezenove, “O Preço da Paixão”, as histórias do divã de Gabriel Rolón nos mostram como a dor avassaladora de uma traição no presente é, na verdade, a reencenação de uma ferida primordial, um roteiro inconsciente que nos leva a repetir o sofrimento em uma busca trágica por domínio. Em seguida, no capítulo vinte, “O Mal-estar no Vínculo”, o diagnóstico de Jean-Claude Liaudet (Roland) atualiza o mal-estar freudiano, localizando-o não mais na repressão, mas na própria precariedade dos laços em uma era de sujeitos “desfiliados” de suas âncoras simbólicas.

Este artigo final aprofundará essas duas teses, demonstrando como o roteiro oculto da compulsão à repetição (Rolón) encontra o cenário perfeito para sua encenação na cultura dos vínculos fluidos e sem garantias (Liaudet/Roland). Juntos, eles selam a compreensão da traição como um sintoma complexo, cuja superação exige não uma solução mágica, but o corajoso pagamento do preço: o de confrontar a própria história para, enfim, deixar de ser um ator do passado e se tornar o autor do próprio futuro.

Parte I: O Preço da Paixão – A Conexão com as Feridas Primordiais (A Tese de Gabriel Rolón)

Rolón nos convida a olhar para a dor lancinante da traição e a perguntar: de onde vem tamanha intensidade? Sua resposta é que a crise atual raramente é sobre o evento em si; ela é um gatilho que detona uma bomba-relógio plantada na infância.

1.1. O Eco da Infância: A Dor Atual como Reencenação de uma Ferida de Origem

A tese central de Rolón é que a dor de uma traição ou de uma crise de ciúme no presente é o eco de uma ferida primordial não cicatrizada. As histórias do divã revelam, com impressionante recorrência, como o drama adulto funciona como um gatilho que reabre a dor arcaica do abandono, da exclusão, do desamor ou da humilhação vivida na relação com as figuras parentais.

A intensidade do sofrimento, que parece desproporcional ao evento presente, se explica por essa sobreposição. Não estamos sofrendo apenas pela perda do parceiro, mas pela reedição da perda fundamental que estruturou nossa psique. A paixão avassaladora e o sofrimento dilacerante são o resultado dessa conexão temporal, transformando o trauma adulto na reencenação de uma tragédia infantil. O parceiro que trai deixa de ser apenas uma pessoa para se tornar o ator que, no palco do presente, representa a figura que originalmente nos feriu.

1.2. O Roteiro Oculto: A Compulsão à Repetição como um Destino Buscado

Aprofundando este ponto, Rolón foca no mecanismo freudiano da compulsão à repetição. De forma inconsciente, somos levados a escolher parceiros e a criar situações relacionais que nos permitem repetir, com uma fidelidade assustadora, os mesmos roteiros de sofrimento de nossa história. O que parece atração ou acaso é, na verdade, a força de um roteiro invisível que nos leva sempre ao mesmo final doloroso.

Nesta ótica, a traição deixa de ser um acidente para se tornar um destino que o sujeito busca. Por que buscaríamos a repetição da dor? A resposta é uma das mais trágicas da psicanálise: é uma tentativa desesperada e fadada ao fracasso de, desta vez, dominar o trauma antigo. Ao reencenar o drama, o sujeito nutre a fantasia inconsciente de que, agora adulto, poderá controlar a cena e obter um resultado diferente, transformando a dor passiva em uma experiência ativa. No entanto, sem a elaboração e a ressignificação, a repetição apenas reforça a ferida. A clínica se torna, então, o espaço privilegiado para desvelar esse roteiro oculto e entender por que estamos presos a ele.

1.3. Pagando o Preço: Da Vítima do Passado ao Autor do Futuro

O conceito de “preço da paixão” é, para Rolón, um conceito clínico. O sofrimento nos apresenta uma escolha, e a superação tem um preço. Este preço é o da renúncia: a renúncia à posição de vítima do passado e à repetição compulsiva. Pagar esse preço exige a coragem de se confrontar com a própria história, de olhar para a ferida original sem desvios.

A análise, através das histórias do divã, permite ao sujeito entender seu roteiro e o papel que ele mesmo desempenha em sua perpetuação. A verdadeira superação ocorre quando, a partir desse saber, o sujeito pode finalmente assumir a responsabilidade ética por seu desejo e fazer uma nova escolha. Ele deixa de seguir o roteiro antigo e invisível. Pagar o preço significa aceitar a dor de olhar para a própria história para, enfim, se emancipar dela. É o movimento que transforma o sujeito de um ator passivo de seu passado no autor consciente de seu futuro.

Parte II: O Mal-Estar no Vínculo – A Lógica da Deslealdade na Cultura (A Tese de Jean-Claude Roland/Liaudet)

Se Rolón nos mostra o roteiro individual, Liaudet nos mostra o palco cultural. Ele argumenta que o mal-estar contemporâneo mudou de endereço: não está mais na repressão, mas na própria estrutura precária dos laços.

2.1. A Âncora Perdida: O Mal-Estar em uma Era de Vínculos Precários

A tese de Liaudet atualiza o mal-estar freudiano. Se para Freud o sofrimento neurótico vinha do conflito entre o desejo e a repressão imposta pela civilização, para Liaudet o mal-estar de hoje vem da precariedade dos laços. Ele descreve o sujeito contemporâneo como “desfiliado”, ou seja, desconectado das grandes âncoras simbólicas que antes davam solidez aos vínculos – a tradição, a religião, a comunidade, a palavra do pai.

Essa perda das âncoras gera uma profunda angústia justamente onde deveríamos encontrar segurança: no próprio ato de se vincular. Sem um “porto seguro” externo que garanta os pactos, cada relação se torna uma navegação em mar aberto, em meio à tempestade da modernidade. O vínculo, que deveria ser o abrigo, torna-se o próprio local do mal-estar e da incerteza.

2.2. A Aposta no Vazio: Confiança e Lealdade em Tempos de Incerteza

Como consequência dessa desfiliação, a lógica da deslealdade tende a se tornar a norma, e não a exceção. Em um mundo de laços fluidos, sem garantias externas, ser leal se torna um ato contracultural, quase subversivo.

A confiança, por sua vez, muda radicalmente de natureza. Ela deixa de ser um pilar sólido, baseado em instituições e juramentos garantidos por uma instância terceira, para se transformar em uma aposta no vazio, um salto de fé arriscado. Confiamos não porque haja uma garantia, mas apesar da ausência total de garantias. A traição, nesse contexto, é analisada como o sintoma que revela essa fragilidade estrutural. Ela é a prova dolorosa de que o vínculo não possuía uma fundação simbólica sólida, de que a aposta no vazio resultou na queda.

2.3. O Laboratório da Confiança: A Reinserção no Circuito da Reparação

Diante desse cenário, qual o horizonte clínico? A reconstrução da confiança não é um retorno mágico a um estado de inocência que não existe mais. Ela é um árduo trabalho de vínculo.

A clínica psicanalítica, e especialmente a relação com o analista, é vista como um laboratório para a reinserção do sujeito no circuito da confiança. A superação do mal-estar se dá por meio da experiência concreta de um laço – o laço analítico – que, mesmo em um mundo precário, se mostra resiliente, capaz de suportar ambivalências e, acima de tudo, capaz de reparação. É ao vivenciar a possibilidade de um vínculo que sobrevive às crises e se reconstrói que o paciente pode reaprender a confiar. A clínica não oferece uma solução mágica, mas a experiência de que, mesmo sem garantias, o trabalho diário, paciente e por vezes frustrante da vinculação ainda é possível.

Conclusão Final: A Voz do Calado e o Início de um Novo Capítulo

Ao final desta imersão, as teses de Rolón e Liaudet se unem em uma poderosa síntese. O sujeito que carrega o roteiro oculto de uma ferida primordial (Rolón) encontra-se hoje em uma cultura que, pela precariedade de seus laços, oferece o palco ideal para a reencenação infinita de sua tragédia (Liaudet). A compulsão individual e a fragilidade cultural se retroalimentam, tornando a experiência da traição um dos sintomas mais candentes de nosso tempo.

O percurso deste curso nos levou a uma perspectiva radicalmente diferente do senso comum. A traição não é um simples ato de maldade, mas o sintoma complexo de uma história que não foi contada e de um mundo cujas fundações simbólicas se tornaram líquidas.

A proposta da psicanálise, como bem conclui a aula, é dar “a voz ao calado”. É permitir que o sofrimento, que se manifesta na repetição, possa finalmente falar e se transformar em história. É desvelar o roteiro para que possamos, enfim, parar de encená-lo. Ao oferecer uma escuta continente e um olhar compartilhado, a clínica se torna o espaço onde a dor pode ser ressignificada, onde a vítima pode se tornar autor.

Encerramos este ciclo não com respostas definitivas, mas com a convicção de que, ao compreendermos a complexidade do cenário e os elementos de nossa própria história, ganhamos a possibilidade de fazer uma nova escolha. Uma escolha que, embora não apague a dor do passado, nos permite pegar a caneta e, com a mão ainda trêmula, começar a escrever um novo capítulo. Minha gratidão pela confiança, perseverança e fidelidade nesta jornada. Arrivederci.

Deixe um comentário