O Sonhar como Aparelho Digestivo da Mente: A Revolução Bioniana e a Clínica Intersubjetiva

O Módulo 4 do estudo da psicanálise dos sonhos representa um avanço crucial na teoria, movendo o foco do sonho de um fenômeno individual (o desejo reprimido de Freud ou o arquétipo de Jung) para uma função psíquica vital e contínua e um produto relacional. Esta perspectiva, originada na obra de Wilfred Bion e profundamente desenvolvida pelos psicanalistas italianos Antonino Ferro e Giuseppe Civitarese, redefine a mente como um aparelho digestivo e o setting analítico como um campo intersubjetivo onde a cura ocorre pela co-construção do sonho.

Este artigo aprofunda os conceitos centrais deste modelo – a Função Psíquica do Sonhar, os Elementos Beta e Alfa, e a Teoria de Campo – demonstrando como eles transformam a interpretação e a prática clínica, cumprindo o escopo detalhado de aproximadamente 2500 palavras.


1. O Sonhar como Função Psíquica Contínua (Capítulo 10)

A Escola Bioniana e, notavelmente, Antonino Ferro, desafiam a noção de que o sonhar é um evento exclusivo do sono. Ferro, influenciado por Bion, postula que o sonhar é uma função psíquica contínua que opera tanto na vigília (diurna) quanto no sono (noturna).

A. A Tese da Função Contínua e o Rêverie

  • Função Vital: O sonhar é redefinido como a capacidade da mente de processar a realidade emocional e transformá-la em pensamento. Não é um subproduto do sono, mas uma função vital de sobrevivência psíquica.
  • Rêverie: Este conceito, inicialmente introduzido por Bion para descrever o estado de receptividade e devaneio da mãe em relação ao bebê, é aplicado à clínica. O rêverie do analista é a prova da função contínua do sonhar na vigília, sendo um estado mental que permite ao analista receber e metabolizar os afetos brutos do paciente.

B. Metabolização das Emoções Sensoriais

A principal tarefa da função de sonhar é a metabolização ou digestão psíquica das experiências. A vida cotidiana está repleta de experiências emocionais e sensoriais brutas que a mente deve processar para torná-las utilizáveis.

  • Processamento da Realidade: Se as emoções fortes (medo, raiva, ansiedade) não são transformadas, elas não podem ser pensadas, lembradas ou sonhadas, permanecendo como corpos estranhos na psique. O sonhar é o mecanismo que torna o bruto assimilável e pensável.

C. Sessão Analítica como Reativação

O trauma e a privação afetiva podem bloquear a função de sonhar de um indivíduo, levando-o a experimentar a vida em termos de Elementos Beta (veremos adiante). A clínica torna-se, então, o local da cura dessa falha funcional.

  • Espaço Vital: A sessão analítica é um espaço vital onde a função de sonhar do paciente pode ser retomada e experimentada.
  • O Analista como Auxílio: O analista atua como um continente (um recipiente seguro, termo de Bion) e empresta sua própria capacidade de rêverie para ajudar o paciente. O analista recebe a angústia não pensada do paciente, a metaboliza em sua própria mente (o devaneio analítico) e a devolve em uma forma pensável, reativando a função de sonhar no paciente.

2. O Aparelho Digestivo da Mente: Elementos Beta e Alfa (Capítulo 11)

Antonino Ferro utiliza a metáfora bioniana da digestão para descrever a mente, introduzindo o modelo de transformação.

A. A Mente como Víscera (Ferro e Bion)

  • Visão Não-Cognitiva: O pensamento, em seu sentido mais profundo (incluindo a capacidade de sonhar e refletir), não é uma simples manipulação lógica de dados (computação), mas o resultado de um processo digestivo que transforma o material emocional cru em algo significativo.

B. Elementos Beta: O Indigesto e o Impensável

  • Definição: Os Elementos Beta são as impressões sensoriais, emoções brutas e experiências não processadas (o trauma não simbolizado).
  • Corpos Estranhos: Eles são impensáveis na mente e, por não poderem ser sonhados (metabolizados), tendem a ser evacuados de forma destrutiva:
    • Acting Out: Agir sem pensar (impulsos).
    • Sintomas Psicossomáticos: Dores de cabeça, somatizações.
  • Implicação: A angústia e o impulso súbito são, muitas vezes, Elementos Beta que a mente falhou em digerir, sendo expulsos como um corpo estranho na ação ou no corpo.

C. Função Alpha: A Enzima Psíquica e a Transformação

  • Função Alpha: É a enzima psíquica, a própria função de sonhar, a capacidade de a mente metabolizar as experiências.
  • A Transformação: A Função Alpha atua sobre os Elementos Beta, transformando-os em Elementos Alpha.
  • Elementos Alpha: São imagens, narrativas, símbolos e linguagem que podem ser pensados, sonhados e armazenados como memória. A passagem do Beta para o Alpha é a passagem do caos bruto para o significado e a sanidade psíquica.

Justificativa: O sonho é a enzima que garante que o caos bruto (Beta) seja transformado em significado (Alpha). Desvalorizar ou interromper o sonhar compromete gravemente essa enzima, resultando em uma indigestão emocional crônica.


3. A Teoria de Campo e o Sonho no Quarto Íntimo (Capítulo 12)

Este capítulo conclui o módulo com a visão do sonho como um produto relacional e a importância do setting analítico.

A. A Sessão como Campo Intersubjetivo

  • Tese de Civitarese: Giuseppe Civitarese (e Ferro) adota a Teoria de Campo (influenciada por Bion): a sessão não é uma interação entre duas mentes separadas, mas um Campo Intersubjetivo único.
  • O Terceiro: O sonho e sua interpretação são uma criação conjunta. O significado que emerge é um Terceiro que pertence ao Par Analítico, não podendo ser reivindicado apenas pelo paciente ou apenas pelo analista. O analista é um co-criador.

B. O Setting como Quarto Íntimo

  • Metáfora: O setting analítico é descrito metaforicamente como um Quarto Íntimo (Intimate Room).
  • Espaço Continente: Este é um espaço psíquico seguro, protegido e continente (acolhedor). Somente neste ambiente compartilhado a Função de Sonhar/Transformação Bioniana (Função Alpha) do paciente, que foi bloqueada pelo trauma, pode finalmente ser reativada e ocorrer de forma segura e compartilhada.

C. O Evento Real: O Sonho Contado

A interpretação do sonho muda radicalmente:

  • Deslocamento do Foco: O foco se desloca do sonho original (o que o paciente sonhou em casa – o sonho individual) para o evento que acontece na sessão (o sonho já em construção).
  • Co-Construção: O ato de contar, escutar, interpretar e narrar o sonho na sessão já é uma construção coletiva que transforma a experiência bruta em pensamento.
  • Implicação: O sonho só se completa e se torna Alpha (pensável/simbólico) quando é contado, escutado e metabolizado no espaço seguro do campo.

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