O Módulo 6 da teoria psicanalítica dos sonhos marca uma transição essencial: a aplicação da metapsicologia freudiana e bioniana à crítica cultural e sociológica do século XXI. O foco principal reside em como o capitalismo digital e a cultura da performance afetam a própria capacidade de sonhar (simbolizar, metabolizar afetos e criar narrativas internas), levando a uma profunda crise da simbolização.
Este artigo aprofunda as análises de Joel Birman, Sherry Turkle e Bernard Stiegler, demonstrando que o sonho, nesse contexto, torna-se um campo de batalha e um ato de resistência contra o esgotamento, a fragmentação do self e a substituição do desejo pela pulsão bruta do consumo. O objetivo é fornecer uma visão completa e fundamentada, cumprindo o escopo detalhado de aproximadamente 2500 palavras.
1. A Tirania da Performance e o Novo Mal-Estar (Capítulo 16)
A análise do psicanalista brasileiro Joel Birman sobre o sujeito na contemporaneidade é fundamental para entender o novo mal-estar que substituiu a neurose clássica freudiana.
A. A Cultura da Performance e a Substituição do Desejo
Fundamentação: Freud definiu o mal-estar clássico como a neurose de culpa e repressão, originada da luta do Ego contra o Id (desejo) e o Superego (moralidade)
. O sujeito neurótico sofria por não poder ter o que desejava.
- O Sujeito Atual: Birman argumenta que o sujeito de hoje não é mais primariamente o sujeito do desejo reprimido, mas o sujeito impelido à performance e ao espetáculo. O valor migra do ser (o Self, a integridade interna) para o parecer (o currículo, as métricas, as curtidas, o sucesso visível).
- O Novo Mal-Estar: O sofrimento é deslocado da culpa para a insuficiência e o fracasso. A pressão constante para atingir ideais de espetáculo impossíveis (como ser feliz, produtivo e realizado 24/7) leva a patologias do vazio (depressão, pânico, ansiedade generalizada e Burnout). O sofrimento contemporâneo é: “Não consigo ser o que devo ser.”
B. A Pobreza Simbólica e o Declínio do Sonhar
A cultura da performance gera uma consequência direta na economia psíquica do indivíduo: a pobreza simbólica.
- Atrofia do Espaço Interno: O foco na ação imediata e na exaustão pelo visível não deixa espaço interno para a ruminação psíquica (rêverie ou devaneio). A psique está sempre em modo de prontidão ou descarga.
- Falha da Função Alpha: Sem o rêverie (a Função Alpha de Bion/Ferro), o sujeito perde a capacidade de sonhar a experiência, ou seja, de metabolizar e transformar as emoções brutas (Elementos Beta) em pensamento e símbolo.
- Substituição: A elaboração simbólica é substituída pelo acting out (agir impulsivamente em vez de pensar). O sujeito encena o trauma no presente (em explosões de raiva, compras compulsivas, ou padrões destrutivos) porque a mente falhou em processar o material internamente. O sonho, neste cenário, torna-se um espelho da fragmentação identitária e da falta de tempo para a própria psique.
2. A Erosão da Introspecção na Vida Conectada (Capítulo 17)
A socióloga e psicóloga Sherry Turkle foca em como a tecnologia digital impacta a qualidade da relação humana e a formação do Self.
A. O Paradoxo Alone Together (Sozinhos Juntos)
- Solidão Relacional: Turkle, em Alone Together, documenta o paradoxo: a hiperconectividade digital (mensagens instantâneas, redes sociais) mascara uma profunda solidão relacional. Estamos constantemente conectados a dispositivos, mas psicologicamente isolados uns dos outros.
- Fuga do Self: O celular e a rede tornam-se objetos transicionais que oferecem uma fuga constante da solidão. O sujeito prefere a companhia artificial e controlada da tela ao desconforto da introspecção, que é o espaço vital necessário para o amadurecimento psíquico.
B. O Declínio da Empatia e a Interação Limpa
A comunicação mediada pela tecnologia tem um custo direto para as relações interpessoais.
- Perda da Leitura Complexa: As interações por telas (texto, áudio editado) diminuem a empatia porque eliminam o “trabalho sujo” da relação: a leitura da linguagem corporal, a expressão de emoções complexas (choro, raiva não contida, silêncio embaraçoso).
- Preferência pela Limpeza: Turkle alerta que passamos a preferir a interação digital limpa, controlada e editada (um Elemento Alpha superficial) ao trabalhoso e confuso da relação humana real (a exposição ao Elemento Beta do outro). O sonho, que exige a capacidade de suportar o caos e a ambivalência, entra em declínio quando a habilidade de lidar com a confusão é atrofiada.
C. Fragmentação do Self e Crise da Simbolização
A constante fuga da solidão e a busca por validação externa (curtidas) fragmentam o Self.
- Self Estável: O Self (o centro integrador da psique, segundo Jung) só se forma através da capacidade de estar só e suportar a introspecção. Ao perder essa capacidade, o sujeito perde a habilidade de formar um Self estável e saudável, fragmentando-se em múltiplas personas digitais.
- Impacto no Sonho: A função de sonhar, que exige a integração das partes (consciente e inconsciente, Sombra e Persona), é comprometida quando o Self está fragmentado. O sonho se torna um espelho dessa fragmentação, com imagens desconexas e alta ansiedade de performance.
3. Miséria Simbólica e a Época Hiperindustrial (Capítulo 18)
O filósofo francês Bernard Stiegler fornece a crítica mais abrangente, unindo tecnologia, capitalismo e crise psíquica.
A. A Destruição dos Circuitos Simbólicos
Stiegler argumenta que o capitalismo hiperindustrial (mídia, consumo e tecnologia digital) destrói sistematicamente os circuitos simbólicos da sociedade.
- O Papel dos Rituais: Circuitos simbólicos (mitos, rituais, arte, história) são essenciais porque dão sentido coletivo à vida e permitem a Individuação Psíquica. Rituais (como luto e celebração) transformam o caos da vida em símbolo utilizável.
- Substituição pelo Consumo: Quando esses rituais são substituídos pelo consumo imediato e pela mídia, a capacidade de a sociedade se dar sentido é corroída, resultando na Miséria Simbólica.
B. Curto-Circuito: A Substituição do Desejo pela Pulsão
Esta é a análise mais aguda de Stiegler sobre o impacto do marketing digital no aparelho psíquico.
- Atenção como Recurso: As tecnologias captam o recurso mais valioso: a atenção e o tempo cerebral.
- Curto-Circuito no Desejo: O marketing e a mídia provocam um curto-circuito que desvia a energia do desejo simbólico e de longo prazo (que exige elaboração, espera e simbolização, ligando o sujeito ao futuro) e a substitui pela pulsão bruta, imediata e aditiva do consumo.
- Consequência: Perdemos a capacidade de desejar no sentido freudiano (a construção simbólica de um objeto) e ficamos presos à pulsão de descarga (o consumo selvagem, o scrolling infinito), que é um Elemento Beta que nunca se transforma em satisfação duradoura.
C. Proletarização Psíquica e o Fim da Singularidade
Stiegler estende o conceito marxista de proletarização (a perda do saber fazer do artesão para a máquina) para a psique.
- Terceirização da Mente: A tecnologia nos proletariza psiquicamente (nos coloniza), tirando o saber viver e o saber pensar.
- Dependência Cognitiva: Ficamos dependentes das máquinas para lembrar, pensar, orientar e, metaforicamente, sonhar. A perda da singularidade e da autonomia do pensamento compromete a capacidade de simbolizar, essencial para a Função Alpha do sonho.
📝 Conclusão: O Sonho como Ato de Resistência
O Módulo 6 revela que a crise da onirologia contemporânea não é um defeito técnico da psicanálise, mas um sintoma cultural.
- Campo de Batalha: O sonho torna-se um campo de batalha onde a psique luta para transformar o excesso de excitação (a performance e o scrolling incessante) em símbolo.
- O Imperativo da Clínica: A psicanálise, conforme sustentada por Birman e Stiegler, deve se concentrar em resgatar o tempo e o espaço para a introspecção – reabilitar a capacidade de desejar em longo prazo e a Função Alpha de sonhar.
- Sonhar é Resistir: Em uma época de Miséria Simbólica, o ato de parar, sentir o tédio, e tentar sonhar o trauma e a performance é, em si, um ato de resistência contra a colonização psíquica e o esgotamento.

