No grande drama da clínica contemporânea, poucas cenas são tão recorrentes quanto a da criança “desatenta”. Sob o rótulo do TDAH, sua mente errante é frequentemente diagnosticada como um cérebro disfuncional, um vácuo de foco a ser preenchido com medicação e técnicas de controle. O décimo primeiro capítulo do curso “Psicanálise e TDAH” nos convida a uma ruptura paradigmática, a uma revolução na escuta que desafia décadas de reducionismo. A proposta é radical: e se a desatenção não for uma ausência, mas uma presença intensa em outro lugar? E se o que chamamos de “distração” for, na verdade, uma imersão profunda em um “teatro interior”, um palco rico de fantasias e dramas psíquicos que nos pede uma escuta mais refinada?
Este artigo propõe-se a adentrar este universo fantasmático, aprofundando a tese de que o caminho para a atenção no mundo externo passa, paradoxalmente, por uma expedição guiada e validada ao mundo interno. Primeiramente, iremos operar a ressignificação radical da desatenção, transformando-a de um vazio a ser eliminado em um refúgio psíquico a ser compreendido. Em seguida, analisaremos o conteúdo deste teatro, explorando os sonhos e as fantasias de onipotência como mecanismos de defesa que revelam conflitos profundos. Por fim, definiremos o objetivo e a postura da escuta terapêutica, que busca dar voz a este mundo fantasmático para que o sujeito possa se apropriar de sua imaginação como um poderoso recurso criativo, transformando o que era uma fuga em uma fonte de força.
A Ressignificação Radical da Desatenção: De Vazio a Refúgio Psíquico
A primeira e mais fundamental subversão proposta é a de desafiar a própria noção de “déficit”. A biomedicina nos acostumou a pensar na atenção como uma capacidade quantificável que a criança com TDAH “não tem” em quantidade suficiente. A psicanálise nos convida a pensar qualitativamente: não se trata de uma falta de atenção, mas de uma atenção que está direcionada para outro lugar.
A mente da criança aparentemente “desperta” torna-se um palco, um teatro interior onde ela é, ao mesmo tempo, espectadora e protagonista de seus próprios dramas psíquicos. O que de fora parece um olhar perdido, um silêncio alheio, é na verdade uma imersão em um universo de complexidade avassaladora. A criança não está “ausente”; ela está intensamente presente no palco de suas fantasias internas.
Este “desligamento” do mundo externo não é um ato passivo, mas uma ação psíquica, um refúgio. A criança se retira para este teatro secreto como uma forma de resistência contra um mundo externo que pode ser percebido como insuportável, desinteressante, ameaçador ou simplesmente doloroso. A pergunta clínica, portanto, muda drasticamente. Não mais “Como podemos forçar esta criança a prestar atenção ao mundo externo?”, mas sim “O que há no mundo externo que torna o refúgio no mundo interno tão necessário e sedutor?”. A questão, como nos provoca o curso, é se estamos a “curar crianças ou a destruir poetas em formação”, ao tentarmos silenciar, com rótulos e medicações, aquilo que pode ser um portal para a mais rica expressão da vida psíquica.
O Palco da Onipotência e o Telegrama Desesperado
Se a mente desatenta é um teatro, qual é a peça que está sendo encenada? A análise dos sonhos e, principalmente, das fantasias diurnas, nos oferece um acesso privilegiado a este roteiro inconsciente. Um tema recorrente que emerge é o da onipotência. A criança que, na realidade, se sente impotente, controlada e inadequada, constrói no palco de sua fantasia um mundo onde ela é a heroína invencível, o gênio incompreendido, o ser todo-poderoso que controla o universo.
Esta fantasia de onipotência não é um mero devaneio. É um mecanismo de defesa sofisticado e necessário. Funciona como uma resistência psíquica contra o sofrimento, uma forma de compensar um sentimento de desvalia e de se proteger da angústia da fragmentação. É um andaime imaginário que sustenta um ego que se sente frágil demais para lidar com as demandas e frustrações da realidade.
Indo mais fundo, a psicanálise lacaniana nos oferece uma chave de leitura ainda mais potente. O sintoma, em sua totalidade — a agitação, a desatenção, a fantasia — pode ser lido como uma interrogação, um “telegrama desesperado” que a criança envia ao Outro (primordialmente, aos pais). É um ato que carrega a pergunta fundamental sobre seu lugar no mundo e no desejo de seus cuidadores: “Che vuoi?” (“Que queres de mim?”). A agitação pergunta: “O que preciso fazer para que você me veja? Que tipo de objeto eu preciso ser para satisfazer seu desejo?”. A desatenção e o refúgio na fantasia podem ser a resposta a um desejo parental percebido como intrusivo ou aniquilador: “Se o que você quer de mim é algo que me esmaga, então eu me retiro para um lugar onde seu desejo não possa me alcançar”. O sintoma, portanto, não é uma disfunção cerebral isolada, mas uma interrogação desesperada sobre amor, linguagem e o lugar do sujeito no desejo do Outro.
A Expedição Guiada: O Objetivo e a Prática Terapêutica
Diante deste universo fantasmático, a proposta terapêutica psicanalítica não é, de forma alguma, eliminar a fantasia ou “trazer a criança de volta à realidade” à força. Tal ato seria uma violência, o equivalente a demolir o único refúgio que o sujeito construiu para sobreviver. O objetivo é radicalmente outro: dar voz e legitimidade a este universo.
O terapeuta se oferece não como um “corretor da realidade”, mas como um guia para uma expedição ao mundo interno. Ele é o companheiro de viagem que, com uma lanterna (sua escuta), se dispõe a explorar junto com a criança as paisagens de seu teatro interior.
A prática consiste em:
- Validar o Refúgio: Em vez de repreender a distração, o terapeuta pode reconhecê-la. “Percebo que, às vezes, sua mente gosta de viajar para outros lugares. Devem ser lugares muito interessantes.”
- Convidar à Narração: Através do brincar, do desenho ou da conversa, o terapeuta convida a criança a compartilhar fragmentos de seu roteiro. “Conte-me sobre o herói que você estava imaginando. Qual é a sua missão?”.
- Construir Pontes: O trabalho não é abandonar o mundo interno, mas construir pontes integradoras entre ele e a realidade externa. O terapeuta ajuda a criança a perceber como as emoções e os conflitos de seu teatro secreto se conectam com suas experiências na escola e em casa.
A tese final é que o caminho para a atenção no mundo externo passa por esta expedição. Quando a criança se sente vista, ouvida e validada em seu mundo interno, quando sua imaginação é legitimada como um recurso e não como um defeito, a necessidade de uma fuga defensiva diminui. Ela pode, então, se apropriar de sua imaginação como um recurso criativo, utilizando a mesma energia que antes alimentava a fuga para agora alimentar a solução de problemas, a arte e o pensamento inovador. O que era uma fuga se transforma em uma fonte de força.
O Contraponto Crítico: Profundidade Contra a Velocidade Diagnóstica
Esta abordagem, no entanto, exige tempo, paciência e rigor. Ela se posiciona como um contraponto fundamental à “crescente banalização do diagnóstico de TDAH”. O curso nos apresenta a obra de autores como Marzocchi e Portland (“Il Bambino Iperattivo”) como um manifesto contra a “superficialidade periférica” que domina muitos espaços clínicos.
A crítica não é apenas à pressa, mas à falta de uma abordagem metodologicamente rigorosa. Um diagnóstico de TDAH, para ser válido e útil, não pode ser feito em uma única consulta, com base em um questionário. Ele exige uma investigação profunda, que inclua a escuta da criança, a história familiar, a observação em diferentes contextos e, crucialmente, o diagnóstico diferencial. A defesa é pela profundidade contra a velocidade diagnóstica. É um lembrete ético de que nossa tarefa não é categorizar comportamentos que nos incomodam, mas compreender a complexidade do sujeito que sofre.
Conclusão: Da Fuga à Fonte de Autoconhecimento
A perspectiva psicanalítica sobre os sonhos e fantasias no TDAH representa uma das suas contribuições mais humanizadoras e potentes. Ela nos convoca a uma mudança de olhar que tem o poder de transformar a vida de uma criança. Ao recusarmos a lógica do déficit e abraçarmos a do significado, iniciamos uma jornada fascinante.
Deixamos de ver um cérebro disfuncional para encontrar um universo psíquico de imensa complexidade. Deixamos de tentar suprimir uma fuga para nos tornarmos parceiros em uma expedição. E, o mais importante, deixamos de silenciar um suposto “defeito” para aprender a escutar os atos de resistência de um sujeito que, através de seu teatro secreto, luta para preservar sua singularidade contra as pressões de um mundo insuportável. A verdadeira transformação emerge não do esvaziamento mental, mas da corajosa e acompanhada navegação pelos oceanos do inconsciente, onde o que antes era um refúgio se revela, finalmente, como a mais profunda fonte de força e autoconhecimento.