Introdução: Os Mapas Antigos e o Território Desconhecido
Você já teve a sensação de que os mapas antigos já não servem para o território em que pisamos? De que as bússolas que guiavam as gerações passadas perderam o norte, deixando-nos à deriva em um mundo complexo e desorientador? Esta sensação de crise de confiança generalizada, que se estende dos líderes políticos aos especialistas, não é uma mera impressão, mas o sintoma de uma profunda e longa transformação histórica: o colapso da autoridade simbólica.
Este artigo propõe-se a ser uma corajosa investigação sobre as raízes dessa desorientação. Partimos da hipótese psicanalítica de que nosso mal-estar contemporâneo — com sua epidemia de angústia, pânico, ódio e adições — não é um acidente, mas o resultado direto do que teóricos como Massimo Recalcati e Luigi Zoja diagnosticaram como a “evaporação do Pai”. Não se trata de uma nostalgia do patriarcado, mas de uma análise rigorosa sobre como o declínio de uma Lei que antes oferecia limites e mediava os conflitos deixou o sujeito contemporâneo estruturalmente desamparado.
Exploraremos como o trono vazio do soberano simbólico foi ocupado por um novo poder, anônimo e implacável: a lógica do mercado. E, por fim, detalharemos a colheita sombria que resulta dessa nova ordem. Esta jornada não busca lamentar o mundo que se perdeu, mas adquirir as ferramentas críticas para diagnosticar as novas formas de poder e as causas estruturais do nosso sofrimento, transformando a perplexidade em um saber potente sobre os desafios do nosso tempo.
Parte I: A Tese Central – O Colapso da Função Paterna
A tese fundamental que estrutura nossa análise é a de que a causa estrutural de muitos dos distúrbios contemporâneos reside no declínio do simbólico, um processo cujo conceito central na psicanálise lacaniana é o colapso da função paterna.
É crucial entender que, para a psicanálise, o “Pai” não é o genitor biológico, mas uma função simbólica fundamental, designada por Lacan como o Nome-do-Pai. Esta função é a da Lei, do “não” fundador que se interpõe na relação fusional da criança com a mãe, barrando o acesso a um gozo absoluto que seria mortífero. Ao introduzir o limite, a castração simbólica, o Nome-do-Pai pacifica o desejo, inscreve o sujeito na linguagem, na cultura e no pacto social. Ele é o “terceiro” que media a relação dual e potencialmente destrutiva com o outro. É a “cerca” que protege o sujeito de ser devorado pela própria matilha de pulsões e pela rivalidade imaginária.
O que teóricos como Massimo Recalcati, em sua análise da “evaporação do Pai”, e Luigi Zoja, em sua monumental perspectiva histórica e arquetípica, demonstram é que este princípio de autoridade, que antes era encarnado por instituições como a Igreja, o Estado e a família patriarcal, sofreu um processo de longa duração de esvaziamento. As grandes narrativas que davam sentido e direção à vida perderam sua credibilidade. O resultado não foi uma libertação plena, mas o surgimento de um sujeito estruturalmente desamparado, sem as referências verticais que antes mediavam sua relação com a Lei, o desejo e o gozo.
Parte II: A Nova Ordem – A Ascensão do Poder Gerencialista
O vácuo deixado pela autoridade simbólica tradicional não permaneceu vazio. Ele foi rapidamente preenchido por uma nova, e talvez mais insidiosa, forma de poder. Como analisa brilhantemente o psicanalista belga Paul Verhaeghe, testemunhamos a substituição da autoridade pelo poder gerencialista, sob a égide da lógica do mercado.
A autoridade tradicional, mesmo em suas formas mais autoritárias, era baseada no saber, na experiência e em um pacto de confiança. O poder gerencialista, por outro lado, é anônimo, impessoal e baseado puramente em métricas de performance e em uma lógica de avaliação constante. Esta nova forma de poder transbordou do mundo corporativo e colonizou todas as esferas da vida, da educação (rankings, avaliações padronizadas) à saúde (gestão de leitos, metas de atendimento).
A consequência psíquica dessa nova ordem é devastadora. O poder gerencialista não oferece amparo, filiação ou um sentido para o sacrifício; ele oferece apenas avaliação. O sujeito não é mais um cidadão ou um filho, mas um “empreendedor de si mesmo”, um capital humano a ser otimizado. Isso gera uma permanente e desgastante ansiedade de desempenho e uma profunda incerteza identitária, pois nosso valor está sempre sob escrutínio, dependente do próximo resultado, da próxima métrica, do próximo like.
Parte III: A Colheita Sombria – As Consequências Psíquicas do Vazio Simbólico
A troca do soberano simbólico pelo poder gerencialista do mercado produz uma “colheita sombria”, um conjunto de sintomas que definem o mal-estar do nosso tempo. São as consequências diretas de uma vida psíquica sem a mediação e a pacificação da Lei.
- A Angústia e o Pânico (Recalcati): A ausência da mediação simbólica expõe o sujeito diretamente a um gozo desregulado. Sem a “barragem” da Lei para conter e dar nome à pulsão, esta retorna de forma avassaladora e sem sentido. A angústia contemporânea, e em sua forma mais aguda, o ataque de pânico, é, segundo Recalcati, precisamente esta experiência: a irrupção do Real no corpo, um excesso de gozo que não pode ser simbolizado e que ameaça desintegrar o sujeito.
- O Retorno do Ódio (Lebrun): Como argumenta o psicanalista Jean-Pierre Lebrun, a função paterna é a do “terceiro” que se interpõe na relação dual e imaginária (eu e meu semelhante), pacificando a rivalidade. Na ausência dessa função mediadora, a relação com o outro regride a um estado de pura competição especular: o outro, que pensa diferente, não é mais um interlocutor, mas um inimigo a ser aniquilado. O ódio virulento, a polarização política e a cultura do cancelamento são, nesta ótica, um sintoma direto do fracasso da simbolização e do colapso da função pacificadora da autoridade.
- A Violência e as Adições (Zoja): Para Luigi Zoja, fenômenos como a violência juvenil e as adições em massa são respostas trágicas a este vazio de mediação e sentido. São fracassos da simbolização. A violência pode ser entendida como uma tentativa desesperada de inscrever uma “lei” pela força, em um mundo que já não a oferece simbolicamente. As adições (a drogas, ao consumo, à pornografia) funcionam como um “tampão” para o vazio, uma tentativa de criar um objeto de gozo fixo e controlável para regular uma angústia que, de outra forma, seria insuportável.
Conclusão: Da Perplexidade ao Saber Potente
Compreender este processo histórico e estrutural é a experiência fundamental que a psicanálise nos oferece. Não se trata de um exercício de nostalgia ou de um lamento pelo mundo que se perdeu. Trata-se de adquirir as ferramentas críticas para diagnosticar com precisão as novas formas de poder que nos governam e as causas estruturais do nosso sofrimento.
A jornada pela psicanálise, neste contexto, é um convite para entender por que sentimos o que sentimos. É um percurso que busca transformar a perplexidade paralisante diante do caos contemporâneo em um saber potente sobre os desafios do nosso tempo. Este saber não oferece soluções fáceis, mas nos devolve a agência. Ao compreender a lógica do sistema que nos adoece, abrimos a possibilidade de não mais sermos meros objetos de suas engrenagens, mas sujeitos capazes de inventar novas e mais singulares formas de desejar, de fazer laço e de viver.