Na jornada de compreensão dos vícios, a psicanálise nos convida a ir além da superfície. Se a primeira introdução ao tema estabeleceu a necessidade de um olhar humanizante, que enxerga o vício não como uma falha moral, mas como uma linguagem trágica para uma dor inominável, este segundo mergulho nos leva ao coração da teoria e da prática. Partindo da premissa de que o vício se instala no doloroso “intervalo entre o que desejo ser e o que os outros fizeram de mim”, exploraremos como os conceitos psicanalíticos clássicos podem iluminar as compulsões contemporâneas e como a própria psicanálise é desafiada a se reinventar diante de um mundo digitalizado e performático.
1. As Raízes Pulsionais do Vício: Um Diálogo com Freud
As obras de Freud, mesmo sem abordarem o termo “vício” como o conhecemos hoje, oferecem um manancial de ferramentas para compreender a compulsão humana. O mapa das raízes mais profundas da dependência pode ser traçado a partir do jogo dinâmico entre as duas pulsões fundamentais: Eros e Thanatos.
- Eros e o Paradoxo do Prazer: A pulsão de vida (Eros) é a energia psíquica que nos move em direção à união, à criação, ao prazer e à autopreservação. É a força que nos impulsiona a levantar da cama a cada manhã. No vício, contudo, essa pulsão é distorcida. A busca legítima pelo prazer é sequestrada por uma urgência que exige satisfação imediata em objetos (substâncias, comportamentos) que, paradoxalmente, levam à destruição. A energia vital de Eros, em sua busca desenfreada e sem mediação simbólica, acaba por servir aos propósitos de seu oposto.
- Thanatos e as “Pequenas Mortes”: A pulsão de morte (Thanatos) é a tendência à desintegração, à repetição, ao retorno ao estado inorgânico. Ela se manifesta não apenas em atos de destruição explícitos, mas em comportamentos repetitivos que corroem a vida. Os vícios são a encarnação perfeita da pulsão de morte em ação. Cada ciclo de compulsão é uma “pequena morte”: uma suspensão da consciência, um apagamento do eu, uma fuga da tensão da vida. O excesso característico do vício é a expressão dessa busca pela desintegração, uma fuga que se manifesta em mortes parciais, intermediárias e, no limite, na morte real. O noticiário diário, com suas histórias de overdoses, violência e autodestruição, é um testemunho sombrio da força de Thanatos na cultura.
Compreender o vício como um embate entre Eros e Thanatos permite ao clínico olhar para além do comportamento e perguntar: qual força vital está sendo tão desesperadamente buscada a ponto de se tornar destrutiva? E qual angústia de viver está sendo tão intensamente negada a ponto de a repetição da “pequena morte” se tornar a única saída?
2. O Divã no Mundo Digital: A Psicanálise Diante dos Novos Desafios
A psicanálise, nascida no alvorecer do século XX, não pode se entrincheirar em uma ortodoxia que ignore as transformações radicais da subjetividade contemporânea. É preciso, como na metáfora proposta, “trocar os espelhos por janelas”: mover-se de uma auto-referencialidade teórica para uma abertura ao horizonte de novos sofrimentos.
- A Clínica Virtual e a Perda do Real: A migração do consultório para o ambiente online, acelerada pela pandemia, impôs desafios inéditos. A maior fragilidade reside na perda da comunicação não-verbal – as expressões sutis, a postura corporal, a respiração, os movimentos inconscientes que tanto dizem sobre o estado psíquico do analisando. Como aponta o psicanalista Christian Dunker, o setting virtual altera a dinâmica transferencial e a própria materialidade do encontro, exigindo do analista uma sensibilidade redobrada para captar o que se perde na ausência dos corpos.
- O “Show do Eu” e o Narcisismo Digital: As redes sociais complexificaram o narcisismo de maneiras profundas. A busca incessante por validação (likes, seguidores) e a construção de “selves” virtuais cuidadosamente curados criam, como descreve Paula Sibilia em “O Show do Eu”, uma performance contínua da intimidade. A fragilidade reside na ilusão de completude oferecida por essa validação externa, tornando a angústia estrutural e o sentimento de falta ainda mais difíceis de serem acessados e elaborados. O eu torna-se um espetáculo, e o sofrimento real fica escondido atrás de filtros e legendas otimistas.
3. A Clínica em Ação: Lendo as Manchetes com um Olhar Psicanalítico
A psicanálise oferece uma lente para compreender, para além das aparências, o mal-estar psíquico que se esconde por trás das notícias do dia a dia. Para o terapeuta, cada manchete é um convite à reflexão e à formulação de “pistas de ação”.
- Caso 1: “Crise de ansiedade em jovens leva ao aumento do consumo de ansiolíticos.”
- Leitura Psicanalítica: A medicação tenta calar uma angústia que precisa ser falada. A pílula se torna um objeto que mascara conflitos inconscientes e a intolerância à frustração, exacerbada por uma cultura de desempenho.
- Pistas de Ação: 1) Investigar a angústia incubada por trás do sintoma. 2) Trabalhar a função simbólica do medicamento (o que ele representa para o paciente?). 3) Abordar a pressão social por performance que alimenta a busca por alívio imediato.
- Caso 2: “Aumento do vício em jogos online entre adultos desempregados.”
- Leitura Psicanalítica: O jogo funciona como uma fuga da realidade frustrante e um substituto para uma identidade profissional e social perdida. A repetição compulsiva e a busca por vitórias virtuais mascaram a sensação de fracasso real, configurando um “gozo mortífero” que consome o tempo e a vida.
- Pistas de Ação: 1) Compreender a função do jogo como fuga e substituto identitário. 2) Explorar a compulsão à repetição e o gozo mortífero nela implicado. 3) Analisar a regressão a um estado de gratificação infantil e a dificuldade de lidar com os limites da vida adulta.
4. Para Além dos Estereótipos: O Vício como Fenômeno Global e Multifacetado
O olhar humanizante exige que se desconstrua os estereótipos que cercam os vícios, muitos deles com raízes em julgamentos morais e religiosos que condenam a vítima antes de compreender seu contexto. Uma visão global revela como esses preconceitos operam.
Na América do Norte, por exemplo, a crise de opioides é frequentemente retratada como um problema de criminalidade e fraqueza moral, ignorando-se que muitas dependências começaram com prescrições médicas legítimas para a dor. Da mesma forma, o vício em jogos de azar é visto como irresponsabilidade financeira, desconsiderando-se os complexos fatores neurológicos, psicológicos e traumáticos que podem levar ao comportamento compulsivo.
Essa visão moralista não é apenas cruel; ela impede a criação de políticas de saúde pública mais eficazes e compassivas. A psicanálise, ao insistir no contexto sócio-histórico-existencial de cada sujeito, luta contra essa simplificação, buscando entender a teia de fatores que contribuíram para que a liberdade fosse, em algum momento, entregue.
Conclusão: O Horizonte da Escuta
Esta segunda imersão introdutória nos mostra que o campo dos vícios é um território vasto e complexo, que exige da psicanálise uma constante atualização de suas ferramentas e de sua sensibilidade. Não basta a ortodoxia; é preciso coragem para abrir as janelas para as novas configurações do sofrimento. Ao dialogar com Freud sobre as pulsões, ao encarar os desafios da era digital e ao decodificar os sintomas sociais contemporâneos, preparamo-nos para a tarefa essencial: a de uma escuta qualificada, ética e profundamente humana. Fomos introduzidos ao salão principal; agora, o trabalho de sensibilização e aprofundamento pode verdadeiramente começar.