Para Além do Diagnóstico: A Arquitetura de um Saber Psicanalítico sobre o TDAH

Se a primeira introdução ao curso “Psicanálise e TDAH” nos convidou a mergulhar no enigma da “caligrafia da alma”, a segunda apresentação, focada nos recursos teóricos e pedagógicos, nos oferece o mapa e a bússola para essa jornada. Longe de ser uma mera formalidade curricular, a estrutura revelada pelo professor Jombarrus é, em si mesma, uma tese. Ela argumenta que para compreender o sujeito por trás do rótulo de TDAH, não basta acumular informações; é preciso construir um saber arquitetado, multifacetado e eticamente ancorado. Este artigo propõe-se a explorar essa arquitetura, analisando como a cuidadosa seleção de textos, a organização do sumário e a polifonia de vozes bibliográficas convergem para um objetivo central: capacitar profissionais a ler o corpo que escreve, a escutar o sujeito que o sintoma, ao mesmo tempo, revela e esconde.

O Texto Básico: O Coração Pulsante do Conhecimento

O ponto de partida é o “texto básico”, um e-book de 210 páginas que serve como espinha dorsal do curso. A escolha de iniciar sua descrição com a frase “Dentro de cada criança desatenta há um pequeno príncipe a cuidar de sua rosa em um planeta que ninguém pode ver” é uma declaração de princípios. Esta metáfora poética estabelece um contraste radical com a linguagem descritiva e deficitária dos manuais diagnósticos. Onde o olhar convencional vê um déficit de atenção, a perspectiva aqui proposta nos convida a enxergar um universo interior rico, um sujeito engajado em um cuidado precioso (a sua “rosa”), mas em um domínio psíquico (“planeta”) inacessível ao olhar apressado.

Esta frase-chave encapsula a virada psicanalítica: o foco desloca-se da fenomenologia do comportamento para a topologia do sujeito. A “desatenção” não é vista como um vazio, mas como uma atenção voltada para dentro, para um mundo interno que demanda uma escuta e uma decodificação. A extensão e a estrutura do texto, com suas narrativas em nível básico, intermediário e avançado, sinalizam que essa decodificação não é um ato simples, mas um processo gradual de aprofundamento, que exige do profissional a humildade de começar pelo básico e a ambição de alcançar as complexidades teóricas mais avançadas. O texto básico não é, portanto, um manual de instruções, mas um convite a uma imersão na complexidade da alma humana.

A Matriz do Curso: O Mapa da Jornada Terapêutica

Se o texto básico é o coração, a matriz (o sumário) é o esqueleto que sustenta a jornada de aprendizagem. Sua progressão em seis partes revela uma lógica clínica impecável, que conduz o aluno do “o quê?” ao “como?” e, finalmente, ao “com quem?”.

  1. Fundamentos Teóricos: A base de tudo. Sem uma compreensão sólida do que é o TDAH em diferentes perspectivas e, crucialmente, de como a psicanálise o concebe dentro do desenvolvimento infantil, qualquer prática se torna um receituário vazio.
  2. Diagnóstico e Avaliação Psicanalítica: Aqui se dá o primeiro passo prático, mas um passo de escuta, não de rotulação. A ênfase em “entender a família” e produzir um “diagnóstico diferenciado” é central. Isso significa aprender a distinguir o que é da estrutura do sujeito, o que é uma resposta a uma dinâmica familiar disfuncional e o que é um reflexo do mal-estar cultural. É o momento de afinar o instrumento principal do clínico: sua escuta.
  3. Técnicas de Intervenção: Apenas após a fundamentação teórica e o aprendizado da escuta diagnóstica é que se abordam as técnicas. A sequência (psicoterapia infantil, adolescentes, pais) reconhece que o sintoma da criança nunca é apenas dela, mas está inserido em uma teia de relações que precisa ser abordada em suas diferentes frentes.
  4. Práticas Nucleares da Clínica Psicanalítica: Este bloco aprofunda o “como fazer”, focando em ferramentas clássicas da psicanálise com crianças: o brincar terapêutico, a interpretação de sonhos e fantasias, e o manejo de crises. O brincar é apresentado não como passatempo, mas como a via régia para o inconsciente infantil, o palco onde a criança pode encenar e elaborar seus conflitos.
  5. Integração com Outros Profissionais: Este ponto demonstra a maturidade e a relevância da proposta. A psicanálise não é uma ilha. O reconhecimento da necessidade do trabalho interdisciplinar e multidisciplinar, com um destaque para a orientação escolar, posiciona o profissional como parte de uma rede de cuidados, combatendo a onipotência e promovendo uma abordagem integrada e mais eficaz.
  6. Recursos Práticos: A jornada se completa com a instrumentalização, oferecendo ferramentas concretas para avaliação e, principalmente, para o suporte às famílias. Isso mostra que a teoria psicanalítica não se encerra em abstrações, mas busca se traduzir em ações que possam, de fato, aliviar o sofrimento e empoderar os sujeitos e suas famílias.

A Bibliografia: Uma Polifonia de Saberes para a Construção de um Olhar Crítico

Talvez o elemento mais revelador da profundidade do curso seja sua vasta e cuidadosamente selecionada bibliografia. Organizada em blocos temáticos, ela não busca oferecer uma verdade única, mas construir um pensamento complexo através do diálogo e, por vezes, do confronto de diferentes perspectivas. É uma verdadeira “polifonia de saberes”.

  • Bloco 1 – A Base Conceitual: Com autores como Ana Beatriz Barbosa Silva e Paulo Mattos, o curso garante que todos os alunos, mesmo os iniciantes, compartilhem uma linguagem comum e compreendam os fundamentos do diagnóstico de TDAH a partir de uma perspectiva acessível e consagrada no Brasil. É o nivelamento necessário para a decolagem.
  • Bloco 2 – As Perspectivas Críticas: Este bloco é o antídoto contra o dogmatismo. Autores como Marino Pérez Álvarez, que questiona a própria “invenção das doenças mentais”, e Cecília Boal, que analisa a “epidemia do TDAH” e a medicalização da infância, são leituras essenciais para a formação de um profissional que não seja um mero aplicador de rótulos. Este é o convite à dúvida, ao questionamento epistemológico sobre as categorias que usamos e os interesses (farmacêuticos, sociais) que elas podem servir.
  • Bloco 3 – O Coração Psicanalítico: Aqui se aprofunda a abordagem central do curso. Com referências como Mário Eduardo Costa Pereira, Beatriz Janin e a perspectiva lacaniana de Leny Del Tombe, o foco se volta para a escuta da singularidade. A agitação é relida como “mensagem”, o sintoma como uma “escrita corporal”, e o desejo parental como um elemento central na constituição do sofrimento da criança. É a passagem definitiva do comportamento observável para a subjetividade em jogo.
  • Bloco 4 – As Aplicações Práticas e Educativas: Este bloco ancora a teoria na realidade da escola e da vida cotidiana. A inclusão de um guia escrito por Jessica McCabe, uma pessoa que vive com TDAH, é de uma importância imensa, pois traz a “perspectiva vivencial autêntica” e combate o estigma. Da mesma forma, o livro sobre mulheres com TDAH aborda a crucial perspectiva de gênero, reconhecendo como os sintomas se manifestam e são diagnosticados (ou subdiagnosticados) de maneiras diferentes.
  • Bloco 5 – As Perspectivas Avançadas: Este bloco garante que o curso não se limite ao introdutório, mas ofereça caminhos para o aprofundamento acadêmico e clínico. O diálogo proposto por Aylette Barkay entre neurociência e psicanálise é fundamental para posicionar a abordagem do curso no cenário científico contemporâneo, mostrando que não se trata de uma negação da biologia, mas de uma recusa ao reducionismo biológico. Autores como Patrick Landman, com os “olhares cruzados”, reforçam a complexidade e a necessidade de um debate multidisciplinar contínuo.

A Bússola Ética: O Cuidado na Transmissão e no Exercício do Saber

Finalmente, a explícita menção e detalhamento do Código de Ética funciona como a “bússola” que orienta toda a prática. Em psicanálise, a ética não é um apêndice burocrático, mas o próprio alicerce sobre o qual a clínica se sustenta. O sigilo, o consentimento informado, os limites da relação profissional e, acima de tudo, a exigência de formação permanente e supervisão são as condições de possibilidade para que uma escuta transformadora possa ocorrer. Ao encerrar a apresentação dos recursos com este ponto, o curso sublinha que o conhecimento adquirido acarreta uma imensa responsabilidade. O saber sobre o sofrimento do outro exige um rigor ético absoluto.

Conclusão: A Formação de um Olhar

A arquitetura do curso “Psicanálise e TDAH” revela uma ambição que vai muito além de simplesmente ensinar sobre um transtorno. Trata-se de um projeto de “formação do olhar”. Através de um percurso que vai do acolhimento poético à crítica epistemológica, da teoria fundamental à prática clínica e da escuta do indivíduo à análise do mal-estar cultural, o objetivo é desconstruir certezas e construir uma capacidade de interrogação.

Os profissionais formados sob esta ótica não sairão com respostas prontas ou técnicas infalíveis. Sairão, espera-se, com melhores perguntas. Sairão equipados para ver o “pequeno príncipe” por trás da desatenção, para ler a “caligrafia” na agitação e para entender que, muitas vezes, o corpo da criança está apenas gritando as verdades que a cultura adulta se recusa a escutar. Em um mundo que exige soluções rápidas e medicalizantes para o sofrimento, uma proposta como esta é um ato de resistência—uma aposta na lentidão, na profundidade e no poder humanizador da escuta. É, sem dúvida, um convite a uma jornada da qual, como promete o professor, dificilmente alguém se arrependerá.

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