Ao nos aproximarmos do final de nossa jornada pelo complexo universo das dependências, somos convocados a um movimento crucial: levar a psicanálise para além do consultório, para o coração da pólis. O vício não é um drama meramente individual, mas um sintoma social, um espelho das tensões, falhas e dores de uma coletividade. A abordagem desse fenômeno exige, portanto, mais do que uma técnica clínica; demanda uma ética da psicanálise, um compromisso com a cidadania e uma visão humanizada que recupere o senso de comunidade.
A sabedoria latina nos adverte com uma metáfora poderosa: “Sero venientibus ossa” (Ossos para os que chegam tarde). No contexto das dependências, essa frase ressoa como um alerta: adiar a busca por ajuda, procrastinar o tratamento, insistir na fuga da pulsão de morte, pode levar a perdas irreparáveis. A carne, a vida, as oportunidades, se vão, restando apenas os ossos de uma existência consumida. Outra máxima, “Quidquid latet, apparebit” (Tudo o que está oculto aparecerá), dialoga diretamente com o inconsciente, sugerindo que as dores e conflitos reprimidos que alimentam o vício emergirão de forma sintomática, exigindo serem nomeados e elaborados. É nosso dever ético não apenas esperar que apareçam, mas criar as condições para que possam ser escutados.
A Psicanálise para a Cidadania: Uma Clínica Humanizada e Inclusiva
A psicanálise, em sua essência, não pode ser um saber elitista. É preciso resgatar uma visão humanizada e menos reducionista, que se distancie da patologização individual para reconhecer a dependência como um fenômeno humano e social complexo. Os comportamentos aditivos não são apenas “doenças”, mas tentativas desesperadas de solução, uma linguagem do sofrimento que busca dar sentido a uma dor que, muitas vezes, a própria estrutura social produz e silencia.
Uma clínica humanizante e engajada deve ser:
- Colaborativa: Trabalhando em rede com a comunidade em seu entorno — ONGs, abrigos, serviços sociais, etc.
- Flexível: Adaptando-se às diversas realidades e subjetividades.
- Não-Julgadora: Reconhecendo a dignidade e valorizando a experiência do sujeito dependente. A postura do terapeuta deve ser de acolhimento, lembrando sempre que, ao apontar um dedo, três se voltam para nós.
- Crítica: Como argumenta Joel Birman, a escuta psicanalítica deve ser engajada com o contexto social, denunciando as situações onde a dignidade humana é violada e a vida não é promovida.
A Comunidade Terapêutica: Um Novo Útero Social
A comunidade terapêutica, quando fundamentada em uma ética psicanalítica, representa a materialização dessa abordagem coletiva. Ela funciona como um ambiente de renascimento, um “colo ético” para sujeitos cujas histórias são marcadas pelo desamparo e por falhas nas funções parentais.
- Ambiente Contenedor: O teórico Diostete, mencionado na aula, descreve a comunidade como um espaço que reproduz simbolicamente as funções parentais de acolhimento e limite. As regras claras e o cuidado constante oferecem a estrutura que faltou, reparando o desamparo original.
- Transferência Ampliada: O conceito de transferência se expande. Ele não se limita mais à relação dual com o terapeuta, mas se estende ao grupo, à própria comunidade e à coletividade. Essa transferência ampliada permite a reconstrução do laço social que foi quebrado pelo vício.
- Educação em Comunhão: Remetendo a Paulo Freire, “ninguém se educa sozinho; os homens se educam em comunhão”. O tratamento do vício é, fundamentalmente, um processo educativo e coletivo, que visa promover a autonomia e a cidadania do sujeito, libertando-o não apenas da substância, mas de todos os vínculos de subjugação.
Saturno e a Antropofagia às Avessas: A Cultura da Autodevoração
A arte, como sempre, nos oferece metáforas viscerais para a dinâmica psíquica do vício. A pintura “Saturno Devorando um Filho” de Francisco de Goya é a imagem mais potente do excesso pulsional e do consumo como destruição. Ela nos permite pensar o vício como uma autodevoração, uma “antropofagia às avessas”, onde o sujeito, impelido por um gozo mortífero, consome a si mesmo.
Essa obra expressa o gozo que leva à morte, um prazer paradoxal que beira a aniquilação, impulsionado por um Superego cruel que exige sempre mais. Diante desse horror, o analista é desafiado a sustentar a escuta, a não ceder à sedução do controle e a não replicar, ele mesmo, a figura de um “Saturno social” que devora a subjetividade do paciente.
As Múltiplas Faces da Compulsão: Compras e Espiritualidade
A lógica da autodevoração se manifesta em comportamentos aparentemente distintos:
- Oniomania (Compulsão por Compras): A compra é uma tentativa inconsciente de preencher o vazio interno. O objeto adquirido carrega a promessa efêmera de uma completude impossível. O ciclo é autodestrutivo, pois cada compra falha em satisfazer a falta, gerando mais frustração e impulsionando uma nova compulsão. O filme Os Delírios de Consumo de Becky Bloom ilustra essa dinâmica de forma cômica, mas com um fundo trágico.
- Espiritualidade Extrema (Espiritualismo Compulsivo): A busca compulsiva pela elevação espiritual pode mascarar uma recusa da castração, um conceito psicanalítico que se refere à aceitação dos limites e da incompletude da vida. O sujeito nega o real, a dor e a pulsão, mergulhando em idealizações místicas. O filme Comer, Rezar, Amar, embora inspirador, pode ser lido sob essa ótica: a jornada espiritual, em certos momentos, torna-se uma tentativa de negar a dor de um divórcio traumático, deslocando o sofrimento para um ideal místico.
Conclusão: Rumo a uma Identidade Integrada
A jornada terapêutica das dependências é, em última análise, uma jornada de construção e reconstrução da identidade. O psicólogo Erik Erikson propôs que o desenvolvimento humano se dá em oito estágios psicossociais, cada um marcado por uma crise a ser superada. Ele destacou a adolescência como um período crucial, mas a busca por coerência e continuidade do self se estende por toda a vida.
Erikson, crucialmente, integrou as dimensões sociais e culturais ao desenvolvimento psíquico, reconhecendo o papel fundamental do ambiente na construção da personalidade. Sua teoria nos lembra que a superação do vício não é apenas uma questão de força de vontade individual, mas de encontrar um lugar no mundo, de reconstruir os laços sociais e de integrar as diversas partes do self em uma identidade mais coesa e resiliente.
Em suma, a abordagem ético-social das dependências nos convoca a sermos mais do que técnicos da psique; nos convoca a sermos agentes de uma clínica engajada, humanizada e comunitária, que entende que a cura de um indivíduo está intrinsecamente ligada à saúde do tecido social que o cerca.