Práticas e Exercícios Aplicados em Psicanálise dos Sonhos: Uma Jornada de Experiência, Elaboração e Aproximação Clínica

A Psicanálise dos Sonhos, inaugurada por Sigmund Freud com a publicação de A Interpretação dos Sonhos (1900), é mais do que um capítulo na teoria psicanalítica; é o seu fundamento metapsicológico e sua prática clínica por excelência. Se Freud ousou chamar os sonhos de “a estrada real para o conhecimento do inconsciente”, foi porque percebeu que a atividade onírica não é um resíduo fisiológico, mas uma atividade simbólica indispensável para a manutenção e o funcionamento da vida psíquica. O sonhar, nesse sentido, é a forma primária da mente processar o que foi vivido, sentido e evitado durante a vigília.

Desde essa inauguração, a compreensão do sonho evoluiu significativamente com as contribuições de diversas gerações de psicanalistas: Carl Jung viu nos sonhos as expressões arquetípicas da alma em busca de individuação; Wilfred Bion entendeu o sonhar como digestão emocional e a transformação de elementos brutos em pensamentos; Antonino Ferro percebeu o sonhar como construção compartilhada dentro do campo analítico; e, mais recentemente, Mark Solms demonstrou o fundamento neuroafetivo do sonhar, ligando-o à motivação e à busca de satisfação.

Neste artigo aprofundado, propomos não apenas uma revisão teórica, mas uma exploração detalhada e justificada de práticas e exercícios que visam desenvolver o olhar psicanalítico sobre o fenômeno onírico. Afinal, nenhuma teoria se sustenta sem o exercício vivo que permite ao estudante, ao terapeuta e ao leigo transformar o sonho em um objeto clínico, narrativo, emocional e existencial. Os exercícios, divididos em níveis de complexidade crescente (Básico, Intermediário e Avançado), servem como um guia para uma autoanálise orientada, exercícios de formação com pares ou práticas supervisionadas na clínica.


I. EXERCÍCIOS DO NÍVEL BÁSICO: Treinando a Sensibilidade e a Iniciação ao Simbolismo

O nível básico visa reeducar a mente para uma escuta atenta do inconsciente. O primeiro obstáculo a ser superado é a amnésia onírica, seguida pela tendência da mente racional em desvalorizar ou distorcer o material simbólico.

1. Diário Onírico Estruturado – “Treinando a Memória do Sonhar”

O objetivo primordial é aumentar a capacidade de lembrar sonhos e, ao mesmo tempo, organizar o material para desenvolver familiaridade com a linguagem simbólica.

  • Como Fazer: Durante pelo menos sete dias, o registro deve ser imediato ao despertar. É crucial registrar não apenas o enredo, mas os elementos brutos:
    • Fragmentos lembrados ou imagens isoladas.
    • Personagens que apareceram e seus papéis.
    • Sensações corporais ao despertar (tensão, relaxamento, dor, formigamento).
    • O afeto dominante (medo, prazer, nostalgia, vergonha, vazio).
    • A imagem, cor ou som que ficou mais vivo.
  • Justificativa Psicanalítica: Freud (1900) postulou que o sonho é a “guarda do sono” e que a censura é a responsável por distorcer o conteúdo latente. Contudo, Bion (1962) acrescenta que o que fica na memória é, primariamente, o marco do afeto. Registrar logo ao acordar impede que o “sensor diurno” (o ego defensivo) distorça as imagens oníricas e permite capturar os elementos beta (elementos brutos, sensoriais, não-pensados) antes que se dissolvam ou sejam metabolizados em elementos alfa (representações emocionais). Essa prática é a “aproximação gradual do inconsciente” descrita por Freud e Jung.
  • O que Observar: A repetição de temas, padrões de afeto (por exemplo, a repetição da vergonha, do desamparo ou da perseguição) e personagens fixos indicam constelações psíquicas ativas, frequentemente ligadas a conflitos atuais, infantis ou traumáticos que a psique está tentando elaborar.

2. “A Imagem que Fala” – Focalização de um Único Símbolo

Este exercício treina a capacidade de aprofundar simbolicamente uma única imagem, percebendo suas múltiplas camadas de significado.

  • Como Fazer: Escolher um símbolo marcante (água suja, porta trancada, animal ferido, criança chorando) e respondê-lo com profundidade e associação livre:
    • O que essa imagem me lembra na minha vida (passada e presente)?
    • Que emoção ela desperta agora ao pensar nela?
    • O que esta imagem diria se pudesse falar em meu lugar? (personificação).
  • Justificativa: A imagem onírica é condensada (Freud) e contém múltiplas camadas de sentido. Para Jung, cada símbolo é um microcosmo que expressa tensões entre o consciente e o inconsciente, funcionando como um transcendente function da psique. Para Bion, a imagem é um elemento-alfa em potencial: a emoção bruta (beta) transformada em uma representação que pode ser pensada. Trabalhar uma única imagem é como entrar pela porta lateral do inconsciente, contornando a resistência racional do enredo completo.

3. Reconstrução do Cenário Onírico – “O Teatro da Mente”

O foco passa do enredo para o espaço, percebendo o sonho como uma cena teatral construída pela psique para representar estados internos.

  • Exercício: Desenhar ou descrever detalhadamente o cenário do sonho: onde se passa (casa, rua, floresta), qual a iluminação, quais objetos aparecem (móveis, ferramentas, vestimentas) e, principalmente, a existência de portas, janelas ou caminhos.
  • Comentário Clínico: A psicanálise entende os espaços oníricos como extensões dos estados internos do ego e do self. Ambientes apertados podem representar angústias claustrofóbicas ou defesas rígidas; espaços muito abertos, um sentimento de desamparo ou dissolução do self; portas e fronteiras simbolizam as fronteiras do eu (quem entra, quem sai, o que é permitido); escadas e caminhos representam transições psíquicas e o processo de individuação.

II. EXERCÍCIOS DO NÍVEL INTERMEDIÁRIO: Interpretação, Associação Livre e Dinâmica do Sonho

No nível intermediário, o praticante já possui familiaridade com o material e passa a aplicar as técnicas centrais da psicanálise para desvendar o sentido dinâmico do sonho.

4. Associação Livre Orientada – “Deixar o Sonho Pensar em Mim”

É a aplicação do método freudiano central para acessar o conteúdo latente, o significado oculto por trás do conteúdo manifesto (o enredo lembrado).

  • Como Fazer: Reescrever o sonho lentamente, dividindo-o em fragmentos. Após cada frase ou fragmento, praticar a associação livre, anotando:
    • O que isso me faz lembrar agora (pessoas, situações, notícias, filmes)?
    • Que emoção (mesmo que leve) isso provoca em mim neste momento?
    • A quem a pessoa ou situação se parece na minha vida de vigília?
  • Justificativa: A associação livre é a técnica que permite a ruptura da censura e revela a rede de significados que o inconsciente utilizou para montar o sonho. Ela transforma o enredo (o conteúdo manifesto, disfarçado) em seu sentido dinâmico (o conteúdo latente, o desejo ou conflito subjacente). A prática regular desenvolve a fluidez simbólica e a confiança no próprio processo psíquico.

5. “Quem Sou Eu no Sonho?” – Análise das Posições do Ego

Este exercício foca na posição subjetiva do sonhador, investigando como o self ou o ego se apresenta e interage com o conflito onírico.

  • Como Fazer: Responder:
    • Eu estava ativo, passivo ou era apenas um observador (espectador)?
    • Eu controlava a situação, era perseguido ou estava à deriva?
    • Eu me sentia adulto, criança, ou outra versão de mim (e qual era o afeto)?
    • Eu era eu mesmo ou outro personagem (animal, monstro, herói)?
  • Justificativa Clínica: A forma como o eu aparece no sonho indica o estado do ego frente ao conflito. Um eu passivo sugere sentimento de impotência ou vitimização; um eu criança sugere uma regressão necessária para elaborar conteúdos infantis não resolvidos; um eu espectador pode indicar uma dissociação leve, uma defesa contra o afeto intenso do sonho (o mecanismo de defesa operando). É essencial para estudantes que buscam a percepção da posição subjetiva (Ogden).

6. “Os Outros no Meu Sonho” – Construção Projetiva dos Personagens

As figuras do sonho são mais do que meros coadjuvantes; elas são representações de partes da vida psíquica do sonhador e de seus objetos internos.

  • Método: Listar as personagens do sonho e, sem racionalizar, responder:
    • O que essa pessoa (real ou fictícia) desperta em mim na vida real?
    • Ela representa a sombra (Jung), um ideal, um medo, um desejo ou a censura (Freud)?
    • Essa figura é parte de quem eu sou (o lado que não aceito, que desejo, que invejo)?
  • Justificativa Teórica: Para Freud, toda personagem do sonho é uma parte do próprio eu, frequentemente um objeto interno projetado. Para Jung, cada figura é uma manifestação arquetípica (a Persona, a Sombra, o Ánimus/Ânima). Para Bion, são estados mentais em busca de representação. Esse exercício amplia a consciência emocional e revela a dinâmica dos conflitos familiares e internos.

III. EXERCÍCIOS DO NÍVEL AVANÇADO: Interpretação, Análise Clínica e Construção Simbólica

O nível avançado exige domínio das teorias e visa a plasticidade interpretativa, a capacidade de ver o sonho sob múltiplas perspectivas e transformá-lo em conhecimento.

7. Interpretação Tripla – Freud, Jung e Bion

Este é um exercício de metapsicologia aplicada, que treina a mente para pensar o sonho em três sistemas teóricos diferentes, integrando perspectivas.

  • Como Fazer: Escolher um sonho complexo e interpretá-lo sob três lentes:
    • A) Lente Freudiana: Onde está o desejo inconsciente? Que censura aparece? Que disfarce (condensação/deslocamento) o sonho utiliza para se manifestar? Onde está o trauma não resolvido?
    • B) Lente Junguiana: Qual é o símbolo central e suas possíveis amplificações (o que a história/mito/cultura diz sobre ele)? Qual arquétipo está ativo (Sombra, Herói, Velho Sábio)? Que movimento de individuação está sendo expresso?
    • C) Lente Bioniana: Que elementos-beta (sensações brutas, caos) aparecem? O sonho funcionou como digestão emocional (função alfa)? Qual é o conteúdo que ainda não pôde ser pensado pela mente?
  • Justificativa: Este exercício aprofunda o raciocínio clínico e desenvolve a plasticidade interpretativa — a marca de psicanalistas maduros que não se restringem a uma única teoria, mas que a integram para iluminar diferentes facetas do inconsciente.

8. “Reescrevendo o Sonho” – Técnica de Ampliação Simbólica

A reescrita visa expandir o potencial simbólico do sonho, transformando o registro seco em uma narrativa literária viva.

  • Exercício: Reescrever o sonho com o máximo de detalhes estéticos e emocionais, adicionando: textura emocional, cores, sons, movimentos, gestos das personagens, a atmosfera simbólica (suspense, paz, opressão).
  • Justificativa Clínica: Jung chamava essa técnica de amplificação. Ao reescrever, o praticante conecta camadas do inconsciente que estavam adormecidas, aumenta a simbolização, ativa memórias armazenadas e fortalece a função alfa (Bion), transformando o bruto em algo pensável e representável.

9. “Sonhar Acordado” – Devanear como Método Clínico

O devaneio (ou fantasia diurna) é uma forma de sonho diurno que acessa material inconsciente não filtrado que pode não aparecer nos sonhos noturnos.

  • Método: Fechar os olhos em um estado de leve relaxamento. Permitir que imagens espontâneas surjam (um rosto, um lugar, uma situação). O crucial é não controlar – apenas observar e anotar o fluxo de imagens, pensamentos e afetos.
  • Justificativa: Freud estudou o devaneio como fantasia. Bion o compreendeu como um pré-sonho que prepara a mente para a contenção emocional e o sonhar noturno. Jung o utilizou na imaginação ativa como um diálogo com o inconsciente. Essa prática abre as portas para a fantasia inconsciente que molda o mundo interno do indivíduo.

10. Análise do Afeto Dominante – A Chave da Clínica

O afeto é o núcleo dinâmico do sonho. O que guia a experiência onírica não é o enredo (o que acontece), mas o afeto (o que é sentido).

  • Como Fazer: Identificar:
    • O afeto dominante (medo, amor, vergonha, angústia, êxtase, culpa) e sua intensidade.
    • A origem possível do afeto (passado ou presente).
    • O que o afeto está tentando dizer naquela fase da vida do sonhador.
    • O que ainda é impossível simbolizar (o que o afeto destrói ou silencia).
  • Justificativa: Se Freud via o sonho como “guardião do sono”, Bion via-o como guardião da mente. O afeto é o motor do psiquismo e a sua chave. Para Winnicott, os sonhos são guardiões do verdadeiro self. O afeto, quando intenso, sinaliza um conflito agudo ou a proximidade de um conteúdo traumático.

IV. EXERCÍCIOS DE CLÍNICA E SUPERVISÃO: Para a Prática Analítica

Estes exercícios são cruciais para a formação do analista, pois transformam o foco do conteúdo do sonho para o processo de comunicação e a dinâmica do setting.

11. “O Sonho Contado ao Analista” – Estudo do Ato Narrativo

O foco muda para a forma como o paciente (ou o praticante) narra o sonho, um ato tão carregado de significado quanto o próprio sonho.

  • Como Analisar: Observar detalhadamente:
    • As hesitações e os cortes na narrativa.
    • As ênfases e os acréscimos (que não estavam no registro original).
    • As pausas, os risos nervosos, a vergonha ou a irritação ao relatar certos trechos.
  • Justificativa Clínica: O modo de contar revela a resistência, a censura e as defesas do ego que operam no momento. É um indicador direto do estado transferencial – o que o paciente está projetando no analista ou o conflito que está ativo no setting. É um dos exercícios mais importantes para a prática clínica.

12. “A Interpretação Possível” – Redução Interpretativa

Este exercício treina a capacidade de contenção e de oferecer uma interpretação mínima e essencial, sem excessos intelectuais.

  • Exercício: Após a análise completa, reduzir todo o sonho e o material associativo a uma frase interpretativa curta e essencial. Exemplo: “Este sonho expressa sua dificuldade de separar-se emocionalmente de um objeto interno idealizado” ou “O sonho revela a angústia de ser visto como ‘insuficiente’ por uma figura de autoridade.”
  • Justificativa: Bion advertia: “Interpretar demais é estragar o sonho.” A interpretação eficaz deve focar no afeto e no conflito central que o paciente está pronto para receber e metabolizar. O excesso de intelecto reforça as defesas e distancia o paciente do contato com o afeto bruto. A interpretação possível é aquela que expande a capacidade de sonhar (de pensar) do paciente.

13. “O Sonho como Campo” – Análise Intersubjetiva

O sonho não é um produto isolado da mente do paciente; ele é uma construção compartilhada que emerge dentro da relação analítica.

  • Exercício: Responder, do ponto de vista do analista/aluno:
    • O que o sonho despertou em mim (afetos, imagens, memórias)?
    • Quais imagens ou rêveries (devaneios) surgiram em mim automaticamente enquanto o ouvia?
    • O que senti ao escutá-lo (tédio, alívio, tensão, confusão)?
    • O que, no setting, se tornou indizível ou confuso no momento da escuta?
  • Justificativa: Na teoria de campo (Bion, Ferro, Ogden), todo sonho é um produto do entre – do espaço intersubjetivo compartilhado. O analista funciona como um continente (Bion), metabolizando os elementos beta não pensados do paciente através de seu próprio rêverie. Este exercício treina a percepção clínica da contratransferência e da intersubjetividade.

V. PRÁTICA FINAL INTEGRATIVA – O MÉTODO DE 7 CAMADAS

Este método visa uma análise profunda e completa de um sonho, integrando teoria, simbolismo, afeto, arquétipos e neurociência.

1. Camada Descritiva

Relatar o sonho com máximo de detalhe, focando no conteúdo manifesto. O que aconteceu, onde e com quem?

2. Camada Afetiva (A Chave)

Identificar o afeto dominante e os afetos secundários. O que o sonho me fez sentir e qual foi a intensidade?

3. Camada Simbólica (Freud/Jung)

Explorar as imagens centrais e seus significados associativos e arquetípicos. O que o símbolo representa no meu inconsciente e na cultura?

4. Camada Biográfica (Freud)

Relacionar o sonho com acontecimentos atuais e memórias infantis. Identificar os resíduos diurnos e sua ligação com a cena traumática ou conflito infantil.

5. Camada Arquetípica (Jung)

Identificar padrões coletivos, figuras universais (o herói, o vilão, a mãe, o sábio) e o drama interno que se expressa. Qual é o mito ou o drama que está sendo encenado?

6. Camada de Função Psíquica (Bion)

Perguntar sobre o processo: O que o sonho está tentando digerir (elaborar)? O que ainda não pôde ser pensado (elementos beta)? Qual é a falha na função alfa que o sonho aponta?

7. Camada Clínica (Interpretação Integrativa)

Elaborar uma hipótese interpretativa coesa que una o afeto central ao conflito dinâmico e que seja útil para o desenvolvimento psíquico do praticante/paciente.


Conclusão Geral: A Psicanálise dos Sonhos como Prática de Transformação

Os exercícios apresentados não têm como objetivo final a “decifração” do sonho, como se este fosse um enigma a ser resolvido em um manual. A Psicanálise dos Sonhos, em sua forma mais madura, é uma prática de construção de sentido. Ela busca transformar o praticante em alguém capaz de sonhar melhor — ou seja, capaz de metabolizar e pensar seus afetos e experiências.

O sonho é, em essência, o primeiro ato criativo do indivídue perante o caos da vida psíquica. Ao treinarmos a memória onírica, a capacidade associativa, a profundidade simbólica e a sensibilidade afetiva, estamos aprimorando a função alfa da mente. Estamos capacitando o ego para lidar com a verdade psíquica, fortalecendo a consciência e permitindo que o inconsciente se manifeste de forma mais fluida e integrada.

A jornada através destas práticas conduz o estudante e o terapeuta a um raciocínio clínico robusto, desenvolvendo a leitura fenomenológica (o que o sonho é e faz), a criatividade interpretativa e a percepção da dinâmica inconsciente. O objetivo é que o sentido — o latente — emerja, cresça, se expanda e transforme a experiência subjetiva, tornando a vida psíquica mais rica, mais pensada e, fundamentalmente, mais sonhada.

Deixe um comentário