Resumo
Este artigo serve como um mapa detalhado da paisagem teórica do curso “Psicanálise e Filhos”, apresentando os interlocutores fundamentais que guiarão a jornada de aprendizado. Refletindo a abordagem pedagógica do curso, que valoriza a compreensão profunda e a criação de familiaridade com os conceitos, exploramos as contribuições de uma diversa gama de psicanalistas e pesquisadores contemporâneos. O texto organiza esses pensadores em eixos temáticos: as fundações da vida psíquica, desde a gestação (Finzi, Szejer, Vanier) até os primeiros vínculos (Amarante, Broberg, Komisar); a clínica da infância, focada na escuta do sintoma em vez da patologização (Janin, Jerusalinsky, Sideris); os desafios do labirinto digital e da exaustão parental (Gansel, Vasen, Rotenberg, Vranken); o peso das heranças invisíveis, como o trauma transgeracional e o narcisismo (Kogan, Pigozzi); e a crise e reinvenção das funções parentais (Recalcati, Savvopoulos). Ao final, argumentamos que este corpo teórico não é um fim em si mesmo, mas uma ferramenta essencial para afinar a escuta psicanalítica, permitindo que pais e profissionais se tornem agentes conscientes e transformadores na complexa tarefa de criar filhos no século XXI.
Palavras-chave: Psicanálise, Parentalidade, Teoria do Apego, Trauma Transgeracional, Era Digital, Medicalização da Infância, Função Paterna, Escuta Psicanalítica.
Introdução: A Necessidade de um Novo Saber
O curso “Psicanálise e Filhos” se inicia com uma premissa fundamental: na era da informação, o verdadeiro desafio não é assimilar dados, mas compreender em profundidade. A jornada de criar um filho no século XXI é um território complexo, repleto de desafios inéditos e de velhos fantasmas que insistem em se manifestar. Diante disso, o senso comum e os manuais de instrução se mostram insuficientes. É necessária uma nova forma de saber, uma que nos permita escutar para além do comportamento, que nos ajude a decifrar a linguagem da alma. É este o saber que a psicanálise oferece.
Seguindo a metodologia do curso, que reconhece a diversidade de seus participantes — de pais e mães a uma vasta gama de profissionais do cuidado — e a multiplicidade de formas de aprender, este artigo se propõe a ser um primeiro passo na criação de familiaridade com os teóricos que serão nossos interlocutores. Eles são as vozes que nos provocarão, nos guiarão e nos fornecerão as ferramentas para transformar o cardápio de temas em um repertório vivo de conhecimento. Apresentamos aqui a constelação de pensadores que iluminará nosso caminho, organizados por afinidades temáticas, para que possamos começar a conectar os pontos e a construir um pensamento crítico e sensível sobre a parentalidade hoje.
1. As Fundações: Da Concepção ao Vínculo Primordial
A psicanálise revolucionou nossa compreensão ao mostrar que a história de um sujeito começa muito antes de seu nascimento. Um grupo de pensadores nos ajuda a explorar esse território invisível, mas determinante.
- A Jornada Psíquica da Gestação: As psicanalistas Silvia Vegetti Finzi (Itália) e Myriam Szejer (França) nos convidam a ver a gestação não como um mero evento biológico, mas como uma profunda e transformadora jornada psíquica. Finzi descreve a gravidez como uma “crise” no sentido positivo, um ponto de virada que reativa a história infantil da mulher e sua relação com a própria mãe. Szejer aprofunda essa ideia ao explorar o conceito de “bebê imaginário”, uma construção tecida pelos desejos, medos e, crucialmente, pelos fantasmas transgeracionais que habitam o inconsciente dos pais. A intervenção analítica precoce, segundo ela, pode dar voz a esses fantasmas e abrir espaço para o bebê real.
- O Trauma Estruturante do Nascimento: Catherine Vanier (França) oferece uma leitura formidável do parto como um evento psíquico fundador. Para ela, o nascimento é a “dor da origem”, um trauma universal e necessário de separação que inaugura a vida psíquica e a distinção entre o “eu” e o “outro”. A forma como essa dor primordial é acolhida e nomeada pelos pais é o que transforma a ferida em uma base para a resiliência.
- A Clínica Antes da Palavra: Uma vez no mundo, como escutar quem ainda não fala? Mônica do Amarante (Brasil) é uma voz central na clínica com bebês, demonstrando que o corpo da criança é sua primeira linguagem. Seus sintomas (cólicas, distúrbios de sono) são a manifestação de um sofrimento psíquico que pode e deve ser decifrado. A clínica, nesse estágio, não é do bebê isolado, mas da relação, do vínculo.
- A Arquitetura do Vínculo: A importância desses primeiros anos é reforçada por teóricos do apego e da neurociência. Anders Broberg (Suécia) sistematiza a Teoria do Apego, mostrando como a sensibilidade do cuidador em perceber e responder às necessidades do bebê cria uma “base segura”, um modelo interno de funcionamento que influenciará todas as relações futuras. Erica Komisar (EUA) defende de forma contundente a existência de uma “janela crítica” nos três primeiros anos, um período crucial para a arquitetura dos circuitos de regulação emocional no cérebro, argumentando que a presença emocional constante do cuidador primário (o being there) é fundamental.
2. O Labirinto Contemporâneo: Digitalização, Ansiedade e Exaustão
A parentalidade hoje se desenrola em um cenário radicalmente novo, marcado pela onipresença das telas e por uma cultura de performance que esgota pais e filhos.
- O Bebê na Era Digital: O psicanalista francês Yannis Gansel oferece uma das primeiras análises rigorosas sobre o impacto da parentalidade digital. Ele descreve a tela do cuidador como um “terceiro intruso” que rompe a atenção conjunta, essencial para a constituição psíquica. O “olhar desviado” do pai ou da mãe para o celular é uma micro-ausência que, repetida, pode comprometer a formação do vínculo. O psicanalista argentino Juan Vasen aprofunda essa análise, investigando como a imersão digital promove uma “desencarnação” — uma alienação em relação ao corpo real — e um “achatamento da alteridade”, onde o outro é reduzido a um perfil, empobrecendo a empatia.
- A Superestimulação e a Exaustão Parental: A queixa de que as crianças estão “superestimuladas” é comum. O psicanalista belga Stijn Vranken propõe uma releitura: o sintoma da criança é, muitas vezes, uma metáfora para um transbordamento psíquico interno, reflexo da ansiedade não contida dos próprios pais. O primeiro socorro, portanto, não é sensorial (menos estímulos), mas relacional: um adulto regulado que funcione como um “continente” para o caos interno da criança. Eva Rotenberg (Argentina) nomeia diretamente o burnout parental, fruto da sobrecarga e da pressão pela perfeição. Seu corolário são os filhos desconectados, que se refugiam nas telas, que funcionam como um pacto sintomático: uma babá para os pais exaustos e um refúgio para os filhos solitários.
- A Epidemia de Ansiedade: Lisa Damour (EUA) oferece um guia essencial para compreender a epidemia de ansiedade que afeta especialmente meninas adolescentes. Ela diferencia o estresse saudável da ansiedade tóxica e aponta a pressão pela perfeição na cultura contemporânea como um dos principais fatores patogênicos.
3. Ecos e Legados: O Peso da Herança Invisível
A psicanálise nos ensina que somos elos em uma longa cadeia geracional, e que as histórias não contadas e os traumas não resolvidos de nossos ancestrais continuam a ecoar em nossas vidas.
- A Transmissão do Trauma: Ilani Kogan (Israel) é uma das vozes mais comoventes sobre a transmissão psíquica de traumas massivos. Ela mostra como o trauma não elaborado é transmitido inconscientemente, não por palavras, mas por afetos, silêncios e identificações. O descendente pode ser assombrado por um “fantasma transgeracional”, manifestando sintomas que não pertencem à sua própria vida. Frequentemente, é na terceira geração, nos netos, que o segredo traumático encontra uma forma de “falar”.
- O Filho como Refém do Narcisismo: Laura Pigozzi (Itália) faz uma crítica afiada ao narcisismo materno e familiar. O título de sua obra, “Meu Filho Me Adora”, revela a inversão patológica: a criança é convocada a amar e validar os pais, tornando-se refém de seu desejo. Sua função não é tornar-se um sujeito autônomo, mas espelhar o valor da família. A autonomia do filho é vivida pelo genitor narcísico como uma ferida mortal, o que impede a separação psíquica saudável.
4. A Crise das Funções e a Busca pela Lei
Muitos dos dilemas atuais convergem para uma profunda crise nas funções parentais, especialmente a paterna.
- O Declínio do Pai e a Busca pela Lei: Massimo Recalcati (Itália) oferece a potente metáfora da passagem de Édipo a Telêmaco. A juventude de hoje não é mais a de Édipo, que se rebela contra a autoridade paterna, mas a de Telêmaco, que anseia pelo retorno do pai e de sua Lei. A crise, segundo ele, não é da ausência de pais reais, mas da evaporação da função paterna como instância simbólica de limite. Savvas Savvopoulos (Grécia/Brasil) complementa essa visão, argumentando que a ausência de um limite paterno eficaz não leva à liberdade, mas a uma crise do desejo, pois é a Lei que, ao criar a falta, funda o movimento de desejar. A solução não é o retorno ao patriarcado, mas a reinvenção de novas formas de encarnar uma autoridade humanizante.
- A Terceirização do Cuidado: Com um título provocador, Nikos Sideris (Grécia) afirma: “As crianças não querem psicólogos, querem pais”. Ele critica a tendência de delegar a educação e patologizar os comportamentos infantis. O mau comportamento, para ele, não é um transtorno, mas um apelo, um chamado para que os pais exerçam suas funções de amparo e, principalmente, de limite.
5. A Clínica da Infância: Despatologizar, Diagnosticar, Reparar
Finalmente, um conjunto de autores nos fornece ferramentas para a prática clínica e para um olhar mais apurado.
- A Crítica à Medicalização: Beatriz Janin (Argentina) é uma voz central na crítica à medicalização da infância. Ela defende uma clínica que resista à lógica do mercado, que se recuse a colocar rótulos apressados e que insista na escuta da história singular de cada criança e de sua família.
- A Riqueza do Diagnóstico Psicodinâmico: Kai von Klitzing (Alemanha) integra o rigor da pesquisa empírica com a profundidade psicanalítica. Ele defende um diagnóstico relacional, onde o paciente não é a criança, mas o vínculo. Sua abordagem multiaxial considera os múltiplos eixos (clínico, relacional, médico, psicossocial) para evitar o reducionismo.
- A Esperança da Neuroplasticidade: Por fim, Graham Music (Reino Unido), da renomada Tavistock Clinic, une de forma brilhante a teoria do apego, a neurociência e a psicanálise. Ele mostra como o trauma do desenvolvimento (abuso e negligência) impacta a estrutura do cérebro, mas também aponta para a neuroplasticidade como esperança: uma relação terapêutica segura pode, literalmente, religar os circuitos cerebrais, demonstrando que a resiliência não é inata, mas se constrói na segurança de um vínculo de cuidado.
Conclusão: O Desafio da Escuta
Esta constelação de pensadores, com suas diversas ênfases e origens, converge para um ponto central: a urgência de resgatar a escuta. Escutar o bebê em seu corpo, escutar a criança em seu sintoma, escutar o adolescente em seu silêncio, escutar a nós mesmos em nossos fantasmas. O curso “Psicanálise e Filhos” é, em sua essência, um treinamento para essa escuta. Ao nos familiarizarmos com essas vozes e suas teorias, não acumulamos apenas informações, mas afiamos nosso instrumento mais precioso. Pois, no final das contas, criar um filho, seja como pai, mãe ou profissional, é a arte de escutar uma alma se tornar quem ela é destinada a ser.