Psicanálise e Prosperidade: A Clínica como Resistência e a Desconstrução do Mercado Racional

Resumo

Este artigo investiga os capítulos 17 e 18 do curso “Psicanálise e Prosperidade”, que compõem o módulo final sobre “Crítica, Clínica e Emancipação”. A primeira seção, baseada no Capítulo 17, “A Clínica Psicanalítica como Contradiscurso”, posiciona a clínica como um espaço de resistência à sociedade da performance, onde a suspensão das exigências de eficiência permite o surgimento de outras formas de ser. Analisamos como a prática clínica subverte os valores dominantes ao acolher a falha e o sintoma não como erros, mas como manifestações da verdade do sujeito. O objetivo, argumentamos, não é a adaptação, mas a criação de condições para a emergência do desejo singular. A segunda seção, a partir do Capítulo 18, “Desvelando a Irracionalidade Psíquica”, aplica o instrumental psicanalítico para desconstruir o mito do mercado racional, reinterpretando-o como um palco para dramas psíquicos coletivos. Demonstramos como conceitos clínicos (negação, cisão) podem ser usados para ler fenômenos macroeconômicos e como fantasias inconscientes (de ganho infinito, de onipotência) sustentam a adesão a políticas econômicas falhas. Concluímos que a clínica e a crítica são duas faces da mesma moeda: a clínica oferece o refúgio individual, enquanto a crítica nos dá a compreensão do sistema que torna esse refúgio tão necessário.

Palavras-chave: Psicanálise, Clínica, Resistência, Contradiscurso, Desejo Singular, Mercado, Irracionalidade Psíquica, Fantasias Coletivas.

Introdução: As Ferramentas da Emancipação

Chegamos ao ápice de nossa jornada. Após termos diagnosticado o mal-estar contemporâneo, traçado sua genealogia histórica e mapeado suas diversas tipologias, adentramos o módulo final, aquele que se volta para a questão crucial: “E agora?”. Se o diagnóstico é claro, quais são os caminhos para a emancipação? Os capítulos 17 e 18 nos oferecem não uma resposta, mas um método, uma práxis. Eles nos apresentam a psicanálise em sua dupla potência: como uma clínica, um espaço concreto de resistência individual, e como uma crítica, uma ferramenta teórica para desmascarar a irracionalidade do sistema que nos adoece.

Este artigo se propõe a ser um guia para essa dupla exploração. No primeiro momento, adentraremos a “sala silenciosa”, para compreender como o setting analítico funciona como um contradiscurso radical à lógica da performance. Em seguida, levaremos o divã para a praça pública, aplicando os conceitos clínicos para desvelar o “palco oculto” do capital e as fantasias que movem o mercado. Esta é a culminação de nosso percurso: a compreensão da psicanálise não como uma teoria sobre o passado, mas como uma ferramenta viva e urgente para a reinvenção do futuro.

Capítulo 17: A Clínica como Contradiscurso e Lugar de Resistência

Em um mundo que exige performance constante, onde podemos simplesmente ser? Este capítulo define a clínica psicanalítica não apenas como um lugar de tratamento, mas como um espaço político de resistência.

1.1. A Sala Silenciosa: A Suspensão da Lógica da Performance

A clínica psicanalítica é definida como um contraditário, um espaço que opera com uma lógica radicalmente oposta à da sociedade do desempenho. No mundo lá fora, somos incessantemente cobrados por eficiência, produtividade e otimização. Dentro da sala de análise, todas essas exigências são suspensas. O tempo não é o tempo do relógio, mas o tempo do inconsciente. A fala não é julgada por sua utilidade ou coerência, mas é acolhida em sua livre associação.

Ao criar essa “zona autônoma temporária”, a clínica se torna um enclave de resistência. É um dos raros lugares em nossa civilização onde outras formas de ser e de falar são possíveis, onde não somos avaliados por nosso desempenho. A pergunta que nos desafia a pensar sobre nossas próprias vidas é: em que lugares e momentos de sua vida você se sente verdadeiramente livre da obrigação de performar, de produzir ou de ser eficiente? A escassez de respostas possíveis revela a urgência de espaços como o da clínica.

1.2. O Valor do Avesso: O Acolhimento da Falha como Verdade do Sujeito

A prática clínica subverte os valores dominantes de uma forma ainda mais radical: ela acolhe precisamente aquilo que o mundo da performance descarta como lixo. A falha, o tropeço, o sintoma, a fragilidade, o sofrimento — tudo isso, que na lógica do mercado é sinal de incompetência, na clínica é acolhido como a matéria-prima mais preciosa.

Estes não são vistos como erros a serem corrigidos ou eliminados, mas como as manifestações mais genuínas e autênticas da verdade de cada sujeito. São as “formações do inconsciente” (lapsos, atos falhos, sonhos, sintomas) que portam um saber que a consciência ignora. O sintoma não é o inimigo, mas o porta-voz de uma verdade recalcada. A pergunta que inverte nossa relação com nossos próprios “defeitos” é transformadora: e se seus “defeitos”, sua ansiedade, seus erros recorrentes, não fossem falhas a serem eliminadas, mas mensagens importantes sobre sua verdade que você ainda não decifrou?

1.3. Para Além do Roteiro: A Escuta do Desejo Singular

A finalidade deste contradiscurso não é, de forma alguma, a adaptação do sujeito à norma, para que ele possa voltar a performar de maneira mais eficiente. O objetivo é a criação de condições para a emergência do desejo singular.

Em meio ao barulho das expectativas sociais, familiares e de mercado, o desejo de cada um, em sua particularidade, é frequentemente sufocado. A clínica, por meio de uma escuta que não julga e que não impõe um ideal, permite que o sujeito comece a se separar dos roteiros de sucesso pré-fabricados que internalizou. É um processo de desidentificação, de descolamento das demandas do Outro, para que uma pergunta fundamental possa finalmente ser feita. A questão que a escuta analítica busca abrir, e que é o motor da verdadeira libertação, é: se você pudesse se libertar de todas as expectativas — da família, da sociedade, do trabalho —, o que você, única e verdadeiramente, desejaria para sua vida?

Capítulo 18: O Palco Oculto do Capital – A Psicanálise do Mercado

Se o capítulo 17 nos mostra a clínica como um espaço de resistência ao sistema, o capítulo 18 nos oferece as ferramentas para analisar esse mesmo sistema. A proposta é ousada: aplicar o instrumental psicanalítico para desconstruir o mito de que a economia é governada por uma lógica puramente racional.

2.1. A Desconstrução do Mito do Mercado Racional

O mercado, longe de ser um campo de cálculos frios, é reinterpretado como um palco para dramas psíquicos coletivos, profundamente influenciado por forças inconscientes e irracionais. O “humor do mercado”, com seus ciclos de pânico e euforia, as bolhas especulativas, as crises — tudo isso se assemelha muito mais ao funcionamento das paixões humanas do que a uma lógica matemática. A pergunta que nos provoca a ver o noticiário econômico com outros olhos é: você já percebeu como o “humor do mercado” parece mais com emoções humanas do que com cálculos frios?

2.2. O Divã Macroeconômico: Lendo o Sistema com Conceitos Clínicos

A análise propõe o uso de conceitos da clínica para ler fenômenos macroeconômicos.

  • A Negação: A resistência de governos e corporações a adotar políticas de sustentabilidade, mesmo diante de evidências científicas esmagadoras, pode ser lida como uma forma de negação social, um mecanismo de defesa coletivo para não encarar a realidade angustiante da crise climática.
  • A Mania: As bolhas especulativas, com sua euforia irracional e sua negação de qualquer risco, são análogas a um estado maníaco coletivo, uma fuga da realidade em direção a uma fantasia de ganho infinito.
  • A Cisão e a Inveja: A extrema desigualdade e a polarização podem ser analisadas através dos conceitos de cisão (splitting), onde o mundo é dividido em “bons” e “maus”, e de inveja, a força destrutiva que ataca o bem do outro.

A questão que se abre é imensa: podemos entender a crise climática não apenas como um problema técnico, mas como uma recusa coletiva em aceitar a realidade, uma forma de negação em escala planetária?

2.3. O Anel Invisível: As Fantasias Inconscientes que Sustentam o Sistema

Por que aderimos a políticas econômicas que se mostram falhas e destrutivas? A resposta psicanalítica é que essa adesão só pode ser compreendida se levarmos em conta a força das fantasias inconscientes e compartilhadas que sustentam o sistema.

As principais são as fantasias de ganho infinito e de onipotência. A crença de que o crescimento pode ser eterno, de que a tecnologia resolverá todos os problemas, de que a inovação nos salvará de nossos limites — tudo isso funciona como uma fantasia que oferece segurança psíquica à coletividade. Essas fantasias nos confortam, mas ao mesmo tempo nos impedem de encarar a realidade de nossa finitude e dos limites do planeta. A pergunta final que nos deixa diante de nossa própria fé irracional é: até que ponto nossa esperança no crescimento e na inovação não é uma fantasia coletiva que nos conforta e nos impede de encarar os limites reais da existência?

Conclusão: Da Escuta Crítica à Ação Reinventora

A jornada por estes dois capítulos finais nos mostra a psicanálise em sua plena potência. De um lado, a clínica se oferece como um espaço concreto de resistência, um lugar para a desconstrução individual dos imperativos da performance e para a redescoberta do desejo singular. De outro, a crítica nos fornece as ferramentas para desvelar a irracionalidade e as fantasias que sustentam o próprio sistema que torna a clínica tão necessária.

A clínica é o laboratório onde a crítica se torna experiência vivida; a crítica é o mapa que dá sentido político e social ao sofrimento que emerge na clínica. Ao encerrarmos este curso, não saímos com um novo conjunto de regras para a prosperidade, mas com uma “mochila carregada” de ferramentas para uma escuta mais aguçada e uma crítica mais potente. A tarefa que se inicia agora é a de usar essa escuta e essa crítica para nos tornarmos não apenas mais conscientes do nosso mal-estar, mas mais corajosos na invenção de futuros que não sejam mais reféns de uma promessa falida.

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