Psicanálise e Prosperidade: A Constelação Teórica de uma Crítica ao Mal-Estar Contemporâneo

Resumo

Este artigo serve como um guia aprofundado para a paisagem teórica do curso “Psicanálise e Prosperidade e o Mercado das Emoções”. Longe de ser um manual de autoajuda, o curso propõe uma análise psicanalítica crítica das ideologias de sucesso e felicidade que definem o século XXI. Para tal, este texto organiza a vasta bibliografia apresentada em cinco eixos temáticos. O primeiro, “O Diagnóstico do Sujeito Contemporâneo”, reúne pensadores como Christian Dunker e Renata Salecl para analisar como a performance e a escolha se tornaram fontes de sofrimento. O segundo, “A Máquina do Desejo”, explora, com Vladimir Safatle e Todd McGowan, os conceitos lacanianos que explicam como o capitalismo explora o gozo para capturar o desejo. O terceiro, “O Mercado das Emoções”, aborda, com Alejandra Costamagna e Eva Illouz, a comodificação do corpo e da vida interior. O quarto, “A Psique do Sistema”, aplica a psicanálise a fenômenos macroeconômicos com David Morgan e Luigi Zoja. Finalmente, “Horizontes de Fuga”, dialoga com Umberto Galimberti e Dany-Robert Dufour sobre as críticas ao futuro prometido e os caminhos de reinvenção. O artigo demonstra que, em seu conjunto, essa constelação de teóricos nos oferece as ferramentas para desmascarar a promessa de prosperidade e iniciar uma busca por uma vida com mais sentido.

Palavras-chave: Psicanálise, Prosperidade, Neoliberalismo, Desejo, Gozo, Performance, Mal-Estar Contemporâneo, Crítica Cultural.

Introdução: O Convite a uma Nova Escuta

O curso “Psicanálise e Prosperidade” se inicia com uma promessa audaciosa: a de nos guiar em uma “expedição ao coração do nosso mal-estar”. Em uma cultura saturada pela promessa de felicidade e pelo imperativo da performance, a psicanálise oferece uma lente de aumento, um instrumento crítico para irmos além do senso comum. Como a apresentação inaugural nos lembra, o objetivo não é fornecer respostas, mas sim criar familiaridade com um conjunto de conceitos e de “interlocutores” que nos permitirão formular nossas próprias perguntas de maneira mais profunda e potente.

Este artigo se propõe a ser o mapa para esse primeiro encontro. Diante da vasta e rica constelação de teóricos apresentada — vozes que vão do Brasil à Coreia do Sul, da França à Eslovênia —, organizaremos este universo em eixos temáticos. A intenção não é apenas listar nomes, mas tecer as conexões, mostrar como diferentes pensadores, a partir de suas perspectivas únicas, contribuem para um diagnóstico coeso do nosso tempo. Ao agruparmos esses autores, começamos a entender como a busca pela prosperidade se tornou uma armadilha, como nosso desejo foi capturado e como, talvez, possamos começar a imaginar outras formas de viver.

1. O Diagnóstico do Sujeito Contemporâneo: Performance, Escolha e Sofrimento

Um expressivo grupo de teóricos se dedica a diagnosticar o “paciente” de nosso tempo: o sujeito forjado pela ideologia neoliberal. Eles nos mostram como os pilares dessa ideologia — performance, empreendedorismo e livre escolha — se tornaram, paradoxalmente, as fontes de nosso mais profundo sofrimento.

O psicanalista brasileiro Christian Dunker, em “Reivenção da Intimidade”, analisa como a lógica da performance e do “empreendedorismo de si” invadiu nossa vida mais íntima. O sofrimento, nesse contexto, deixa de ser uma condição existencial para ser visto como uma falha de gestão pessoal, um fracasso em ser suficientemente feliz e produtivo, gerando novas formas de ansiedade e depressão. A eslovena Renata Salecl, em “O Sofrimento da Opulência”, foca na ideologia da escolha. Ela argumenta que a abundância de opções (carreiras, parceiros, produtos) não gera liberdade, mas uma ansiedade paralisante e uma sensação crônica de inadequação, pois cada escolha implica uma renúncia e a culpa por não ter feito a “escolha perfeita”.

O argentino Jorge Alemán vai ao cerne da questão política, definindo o neoliberalismo como um sistema que busca o “crime perfeito”: apagar as pistas de sua própria dominação ao se apresentar como a ordem natural do desejo. Sua análise da servidão voluntária ao ideal de prosperidade é vital para entender por que aderimos a um sistema que nos adoece. A crítica do francês Roland Gori complementa essa visão, mostrando como o poder contemporâneo opera por meio de normas de avaliação e protocolos de eficiência que, sob a promessa de otimização, destroem o sentido do trabalho e a solidariedade.

Essa patologia não é uma abstração. O psiquiatra sul-coreano Kim Hyeong-seok (Renan), ao escrever sobre o burnout existencial em uma das sociedades mais competitivas do mundo, e os pesquisadores dinamarqueses Dorte Bligaard e Rikke Rasmussen (René), ao investigarem as altas taxas de sofrimento psíquico em sociedades prósperas, nos mostram os efeitos concretos dessa ideologia.

2. A Máquina do Desejo: O Papel do Gozo e do Capitalismo

Se o primeiro grupo diagnostica o “o quê”, o segundo, de forte inspiração lacaniana, explora o “porquê”. Por que nos deixamos capturar por esse ciclo? A resposta está na complexa relação entre o capitalismo, o desejo e o gozo.

O filósofo brasileiro Vladimir Safatle, em “Maneiras de Transformar Mundos”, utiliza conceitos lacanianos para demonstrar como o capitalismo tardio não apenas produz mercadorias, mas modula e gerencia nossos afetos e desejos. A promessa de prosperidade funciona como uma forma de controle que produz conformismo. O teórico americano Todd McGowan, em “Capitalism and Desire”, oferece uma tese ainda mais provocadora: o capitalismo não reprime nosso desejo, ele o explora. O sistema funciona não porque falha em nos satisfazer, mas precisamente porque nos entrega um sucedâneo tóxico da satisfação: o gozo (jouissance). O gozo é um prazer excessivo, uma compulsão que, por definição, nos deixa sempre insatisfeitos e culpados, prontos para o próximo ciclo de trabalho e consumo.

O italiano Massimo Recalcati, em “O Tabu do Mundo”, adiciona uma peça crucial a esse quebra-cabeça. Ele analisa como, no neoliberalismo, a dívida infinita (seja financeira, de performance ou de felicidade) substituiu a antiga Lei simbólica, tornando-se uma nova e poderosa forma de captura psíquica que aprisiona o sujeito em um estado de culpa e submissão permanentes.

3. O Mercado das Emoções: A Comodificação do Corpo e da Alma

A lógica neoliberal não se contenta em capturar o desejo; ela busca transformar cada centímetro de nossa existência, interna e externa, em capital.

A escritora e psicanalista argentina Alejandra Costamagna (Koan), em “Um Corpo ao Fim”, investiga como o corpo se tornou o principal palco dessa busca pela prosperidade. Ele deve ser saudável, produtivo, belo e feliz — um capital a ser gerenciado. Ela oferece uma crítica contundente à tirania do bem-estar, mostrando como sintomas (ansiedade, transtornos alimentares) podem ser, paradoxalmente, uma forma de resistência do corpo a essa instrumentalização. A socióloga franco-israelense Eva Illouz é talvez a voz mais importante na análise do “capitalismo emocional”. Ela demonstra como as emoções e as próprias relações se tornaram mercadorias e como a busca por uma “prosperidade emocional” (através da autoajuda, da terapia como bem de consumo, etc.) se tornou um mercado lucrativo e uma nova forma de trabalho psíquico. Ela desvela como a linguagem da terapia é cooptada pela lógica do consumo, transformando nosso sofrimento em uma oportunidade de negócio.

4. A Psique do Sistema: Lendo a Irracionalidade Econômica

Um quarto grupo de pensadores ousa aplicar as ferramentas da psicanálise não apenas ao indivíduo, mas ao próprio sistema, revelando a irracionalidade psíquica que se esconde por trás da suposta racionalidade econômica.

O psicanalista britânico David Morgan explora as fantasias coletivas sobre riqueza, poder e crescimento infinito. Ele aplica conceitos clínicos como negação, cisão e inveja para analisar fenômenos macroeconômicos como crises financeiras e a desigualdade, mostrando que a “racionalidade” econômica está, na verdade, impregnada de forças inconscientes. O analista junguiano Anselm Grün (Ancelina Moore-Hell) foca na relação individual com o dinheiro, investigando as raízes inconscientes da ganância, da autossabotagem financeira e da compulsão por acumular, conectando-as a conflitos primários de amor, poder e mortalidade.

Com uma perspectiva mais ampla, o italiano Luigi Zoja diagnostica a obsessão de nossa civilização com o crescimento ilimitado como um vício coletivo, um sintoma que mascara um profundo mal-estar existencial. E o grego Yanis Stavrakakis, analisando os efeitos da crise econômica em seu país, mostra na prática como as decisões econômicas abstratas produzem sofrimento psíquico concreto e devastador em escala social.

5. Horizontes de Fuga: Críticas ao Futuro e Caminhos de Reinvenção

Finalmente, chegamos aos pensadores que, após o diagnóstico, apontam para os limites do nosso modelo e para a necessidade de reinvenção.

O filósofo italiano Umberto Galimberti dirige sua escuta aos jovens, analisando o niilismo que os afeta quando o futuro não se apresenta mais como promessa, mas como ameaça e competição. Ele oferece um diagnóstico contundente do fracasso psíquico do modelo capitalista. O filósofo francês Dany-Robert Dufour investiga a aliança perigosa entre a tecnociência e o ultraliberalismo, que promete um futuro perfeito, otimizado e livre de falhas — ou seja, livre de tudo aquilo que nos torna humanos. O psicanalista belga Paul Verhaeghe atualiza a análise de Freud em “O Mal-Estar na Civilização” para o século XXI, mostrando as novas formas que o desconforto assume sob o imperativo neoliberal.

A obra do psicanalista francês Henri Atlan (Henrique Lohan) (uma possível referência a outro autor com ideias semelhantes) discute o “reverso da biopolítica”: a segregação e os sintomas inclassificáveis que surgem como o resíduo de um sistema que promete a todos a mesma via para o sucesso, mas que inevitavelmente produz exclusão.

Conclusão: Rumo a uma Artesania Consciente

Esta jornada através da constelação de teóricos do curso nos deixa com uma certeza: a prosperidade, como nos é vendida, é uma miragem que esconde um deserto de sentido. Esses autores, com suas ferramentas críticas, nos mostram que o mal-estar contemporâneo não é uma falha individual a ser corrigida com mais esforço ou pensamento positivo, mas um sintoma de uma estrutura que nos adoece.

O convite final do curso, e desta apresentação, é o de nos apropriarmos dessas ferramentas. É o de desenvolvermos uma escuta psicanalítica não apenas para a clínica, mas para a cultura, para a política, para a economia e, acima de tudo, para nós mesmos. Ao entendermos as forças que nos movem, ao desmascararmos as ideologias que capturam nosso desejo, damos o primeiro passo para a reinvenção. Deixamos de ser operários inconscientes na linha de montagem da prosperidade neoliberal para nos tornarmos artesãos conscientes, capazes de imaginar e, talvez, construir outras formas de fortuna, outras formas de vida.

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