Resumo
Este artigo aprofunda a análise histórica proposta no curso “Psicanálise e Prosperidade”, traçando a genealogia do “sujeito performativo” contemporâneo e de seu mal-estar associado. Partindo da premissa de que nosso sofrimento atual é uma consequência acumulada de uma longa história, o texto se articula em três eixos de transformação. O primeiro, “O Capataz Interior”, investiga a transição do poder disciplinar de instâncias externas (Deus, patrões) para uma autogestão interna implacável, onde nos tornamos nossos próprios vigilantes. O segundo, “A Engenharia da Alma”, analisa a mutação crucial do capitalismo, que deslocou seu foco da produção de bens para uma sofisticada gestão psíquica, transformando o desejo, os afetos e a identidade no principal campo de investimento e captura do mercado. O terceiro e último eixo, “O Futuro Hipotecado”, examina como o colapso da promessa moderna de prosperidade transformou o futuro de um horizonte de esperança para uma fonte de ameaça e risco individualizado, gerando uma cultura de administração crônica da ansiedade. Ao final, argumentamos que a compreensão desta genealogia não é um exercício acadêmico, mas um ato clínico e político fundamental para a desconstrução da servidão voluntária e a invenção de novas formas de vida.
Palavras-chave: Psicanálise, Genealogia, Sujeito Performativo, Neoliberalismo, Disciplina, Gestão do Desejo, Ansiedade, Crítica Cultural.
Introdução: O Dever do Retrovisor
Para compreender a paisagem complexa e, por vezes, desoladora do nosso presente, é preciso acionar o retrovisor. O “sujeito performativo” do século XXI — ansioso, exausto, autogerenciado e incessantemente cobrado a performar sucesso e felicidade — não surgiu do vácuo. Ele é o produto final de uma longa genealogia de transformações no poder, no trabalho e no desejo. A aula de hoje nos convida a essa jornada histórica, a esse resgate crítico que nos mostra como o sofrimento atual é uma consequência acumulada, uma herança de séculos de mutações na forma como nos entendemos e nos governamos.
Antes de iniciarmos essa escavação, recordemos os pilares de nossa investigação. Diagnosticamos o mal-estar contemporâneo não como uma falha individual, mas como um sintoma de um sistema. Vimos como o corpo e o desejo foram capturados por uma promessa de gozo infinito. E apontamos para a libertação não como uma otimização, mas como uma ruptura radical. Agora, vamos entender as raízes históricas dessa condição. Traçaremos a trajetória que se inicia na ética protestante, passa pela Revolução Industrial e pela sociedade de consumo, até ser radicalizada pela ascensão neoliberal e exacerbada pela revolução digital. Este percurso se dará através de três grandes movimentos de transformação: a internalização da disciplina, a captura do desejo e o colapso do futuro.
1. O Capataz Interior: Da Disciplina Externa à Autogestão Implacável
A primeira grande transformação na genealogia do sujeito performativo é a da localização do poder disciplinar. Durante séculos, a disciplina foi exercida por instâncias externas e transcendentes. A ética protestante, como analisou Max Weber, atrelou o trabalho à virtude moral, mas ainda sob o olhar de um Deus que tudo vê. As tradições culturais e religiosas ditavam as normas de conduta. Mais tarde, com a Revolução Industrial, o poder disciplinar se encarnou na figura do patrão, no ritmo da fábrica, no relógio de ponto — um controle externo que disciplinava o corpo, transformando-o em uma máquina de produção.
O Iluminismo, com seu ideal de indivíduo autônomo e responsável, preparou o terreno para a grande virada. Progressivamente, ao longo do século XX e culminando com a ascensão neoliberal nos anos 80, esse poder disciplinar migrou. Ele saiu das instâncias externas e foi internalizado pelo próprio sujeito. O patrão, o gerente, o capataz, não desapareceu; ele se instalou dentro de nossa própria psique.
Nascido dessa internalização, o “empreendedor de si” se torna seu próprio gestor e seu mais implacável vigilante. A autocobrança substitui a coerção externa. Somos nós que nos cobramos por mais eficiência, por melhores resultados, por uma performance sem fim, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Como a imagem do escritório com a sombra do capataz projetada na parede ilustra, mesmo na aparente liberdade do trabalho autônomo ou flexível, carregamos dentro de nós um carrasco que nos exige uma jornada de performance sem fim. A pergunta que nos interpela diretamente é: em que momentos do seu dia você se dá conta de que está agindo com o seu próprio corpo como o seu próprio capataz?
2. A Engenharia da Alma: Da Produção de Bens à Gestão do Desejo
A segunda transformação, paralela à primeira, é talvez ainda mais sutil e profunda. O capitalismo, em sua evolução, percebeu que o campo mais lucrativo a ser explorado não era mais apenas o da produção de mercadorias, mas o da própria psique humana.
O sistema capitalista avançou de um foco na produção de bens para uma sofisticada engenharia psíquica. A sociedade de consumo do século XX foi o grande laboratório dessa transição, aprendendo a vincular a identidade não mais à produção, mas ao consumo de mercadorias. O desejo, os afetos, a própria noção de “eu” tornaram-se o principal campo de investimento e captura do mercado.
A felicidade deixa de ser uma busca existencial complexa e contraditória para ser transformada no produto final a ser consumido. Não compramos mais apenas um carro por sua função de transporte, mas pela identidade de sucesso que ele promete. Não adquirimos um smartphone por sua utilidade, mas pelo sentimento de conexão e pertencimento que ele vende. O desejo não é mais reprimido, como na era vitoriana de Freud; ele é estimulado, provocado, direcionado e explorado para alimentar o ciclo incessante de consumo. A publicidade, as redes sociais e a cultura das celebridades são os principais instrumentos dessa engenharia da alma. A questão que desvela esse mecanismo é: qual foi a última vez que você comprou algo, não por sua função, mas pelo sentimento ou identidade que o produto prometia lhe dar?
3. O Futuro Hipotecado: Da Promessa à Administração da Ansiedade
A trajetória histórica culmina em um terceiro e decisivo movimento: o colapso da promessa que sustentava todo o edifício.
Durante a maior parte da modernidade, a disciplina e o trabalho eram justificados por uma grande promessa de prosperidade garantida. Gerações anteriores operavam sob a crença de que o sacrifício no presente levaria a um futuro de segurança e ascensão social. O futuro era percebido como um horizonte de esperança. No entanto, especialmente após a crise financeira de 2008 e a crescente precarização do trabalho, essa promessa ruiu.
O futuro, hoje, deslocou-se de um lugar de esperança para uma fonte de ameaça, risco e instabilidade. A responsabilidade por gerenciar esses riscos (desemprego, crises econômicas, obsolescência profissional) foi totalmente individualizada. O mal-estar contemporâneo, portanto, não é mais o do sacrifício em nome de um amanhã melhor, mas o da administração crônica da ansiedade em um mundo sem garantias. O “futuro foi hipotecado”. Vivemos em um estado de alerta constante, onde a tarefa principal não é mais construir o futuro, mas precaver-se contra suas ameaças. A pergunta que define nossa relação com o tempo é: quando você pensa no futuro, o sentimento que predomina é o de esperança e possibilidade, ou de preocupação e necessidade de se precaver?
Conclusão: A Herança de um Sujeito Esgotado
A genealogia está completa. A ética protestante nos ensinou a nos vigiarmos. A Revolução Industrial nos ensinou a sermos máquinas. A sociedade de consumo nos ensinou a desejar mercadorias. O neoliberalismo internalizou o patrão e nos transformou em empresas de nós mesmos. E o colapso da promessa de futuro nos deixou ansiosos e sozinhos, gerenciando riscos em um presente perpétuo. Este é o sujeito performativo contemporâneo: um capataz de si mesmo, cuja alma foi transformada em campo de investimento do mercado, e cujo horizonte é a administração de uma ansiedade sem fim.
Compreender essa trajetória não é um exercício de pessimismo, mas um ato de libertação. Ao entendermos que o nosso mal-estar não é uma falha de nascença, mas o produto de uma longa construção histórica, ganhamos a distância crítica necessária para começar a desconstruí-lo. É a partir dessa compreensão que a “clínica como resistência” e a “invenção de uma saída” se tornam possíveis. Reconhecer as correntes da história é o primeiro passo para ousar quebrá-las e, como artesãos finalmente conscientes, começar a forjar um outro tipo de futuro.