Psicanálise e Prosperidade: A Patologia do Crescimento Infinito e a Crise do Laço Social

Resumo

Este artigo investiga os capítulos 15 e 16 do curso “Psicanálise e Prosperidade”, que diagnosticam as patologias coletivas subjacentes ao ideal de sucesso contemporâneo. A primeira seção, baseada no Capítulo 15, “A Patologia do Crescimento Infinito”, analisa a obsessão de nossa civilização com o crescimento econômico não como uma estratégia racional, but as a vício coletivo e uma defesa maníaca. Argumentamos que essa compulsão serve para mascarar um profundo mal-estar existencial e a angústia da finitude, sendo sustentada por fantasias inconscientes de onipotência e imortalidade. A segunda seção, a partir do Capítulo 16, “A Crise no Laço Social”, explora as consequências do fracasso dessa promessa de crescimento. Detalhamos o colapso da promessa de um futuro melhor como um trauma simbólico central que leva à desintegração da confiança nas instituições e no outro, fragmentando o laço social. Por fim, analisamos como essa desorientação coletiva produz novos sintomas sociais, como o ressentimento, as teorias conspiratórias e o populismo, como respostas patológicas que tentam, de forma destrutiva, restaurar um sentido para uma sociedade estilhaçada.

Palavras-chave: Psicanálise, Crescimento, Vício Coletivo, Mal-Estar Existencial, Laço Social, Confiança, Sintoma Social, Neoliberalismo.

Introdução: A Febre e o Delírio de uma Civilização

Nossa jornada pela crítica psicanalítica da prosperidade nos conduz agora a um diagnóstico em escala macroscópica. Se os capítulos anteriores dissecaram a formação do sujeito neoliberal e a captura de seu desejo, os capítulos 15 e 16 nos convidam a colocar a própria civilização no divã. O que examinaremos aqui são as patologias coletivas, os sofrimentos que não se restringem ao indivíduo, mas que se manifestam como a febre e o delírio de uma cultura inteira.

Este artigo se propõe a ser um guia para essa análise. No primeiro momento, exploraremos a “febre do infinito”: a patologia do crescimento, a obsessão de nossa civilização com uma expansão econômica que se revelou um vício compulsivo, uma defesa maníaca contra um profundo vazio de sentido. Em seguida, analisaremos as consequências do fracasso dessa promessa: a desintegração da confiança, a crise do laço social e o surgimento de “novos sintomas sociais” que marcam a desorientação coletiva de nosso tempo. Com a psicanálise como ferramenta, buscaremos compreender a base irracional de nosso sistema supostamente racional e as respostas patológicas que emergem quando suas promessas se revelam vazias.

Capítulo 15: A Febre do Infinito – A Patologia do Crescimento

A pedra angular da ideologia da prosperidade é a crença inabalável no crescimento econômico infinito como o motor do progresso e da felicidade. Este capítulo nos convida a uma inversão radical de perspectiva: e se essa busca incessante por crescimento não for uma estratégia racional, mas uma patologia coletiva?

1.1. O Vício Coletivo: O Crescimento como Adicção

A análise diagnostica a obsessão de nossa civilização com o crescimento como um vício coletivo, um comportamento aditivo com todas as características de uma dependência química. Como um viciado, nosso sistema ignora as consequências destrutivas de seu comportamento — a devastação ecológica, o aprofundamento da desigualdade, a exaustão psíquica — em nome da próxima “dose” de crescimento. E, como um viciado, ele entra em pânico e experimenta verdadeiras crises de abstinência (recessões, pânico nos mercados financeiros) quando o ritmo de aceleração diminui. Essa compulsão cega nos lança a uma questão fundamental: quando o progresso se torna uma compulsão, quais são os custos humanos e ecológicos que fingimos não ver?

1.2. A Grande Distração: A Fuga Maníaca do Vazio Existencial

Por que uma civilização inteira se tornaria viciada em algo tão destrutivo? A resposta psicanalítica é que essa adicção funciona como uma poderosa defesa maníaca para mascarar um profundo vazio de sentido e a angústia da finitude.

Em um mundo que perdeu suas “grandes narrativas” (religiosas, políticas, filosóficas) que davam um propósito maior à existência, a atividade econômica frenética serve como uma “grande distração” coletiva. O corre-corre incessante, a busca por mais, a obsessão com os índices econômicos nos mantêm ocupados, nos impedindo de confrontar as questões existenciais mais difíceis sobre o sentido da vida, a solidão e a morte. A compulsão pelo crescimento é uma forma de não pensar, uma fuga para a frente que nos protege do encontro com nosso próprio vazio. A pergunta, aqui, se torna pessoal: em sua própria vida, o corre-corre e a busca por “mais” já serviram como uma forma de não pensar em questões mais profundas sobre o seu propósito de existência?

1.3. Os Deuses da Economia: As Fantasias de Onipotência e Imortalidade

O vício em crescimento, como toda defesa maníaca, é sustentado por fantasias inconscientes e compartilhadas que revelam a base profundamente irracional de nosso sistema supostamente racional. As duas principais são:

  • A Fantasia de Onipotência: A crença quase mágica de que a tecnologia resolverá todos os problemas gerados pelo próprio crescimento. Não precisamos mudar nosso modo de vida, pois a inovação tecnológica encontrará uma solução para a crise climática, para a escassez de recursos, para as doenças.
  • A Fantasia de Imortalidade: A ideia mágica de que, enquanto a economia crescer, “nós”, de alguma forma, não morreremos. O crescimento do PIB funciona como um amuleto coletivo contra a angústia da morte. A expansão contínua do sistema nos dá uma sensação ilusória de que podemos transcender nossa própria finitude.

Essa fé cega na tecnologia e no mercado nos coloca diante de uma questão sobre nossa própria secularização: até que ponto confiamos na tecnologia e no mercado como forças quase mágicas para nos salvar de nossos problemas fundamentais e de nossa própria mortalidade?

Capítulo 16: A Sociedade Estilhaçada – A Crise no Laço Social e a Desorientação Coletiva

O que acontece quando a droga do crescimento infinito começa a perder seu efeito? O que emerge quando a promessa que sustentava a compulsão se quebra? O capítulo 16 analisa as consequências devastadoras do fracasso dessa promessa: a desintegração do tecido social.

2.1. O Colapso da Promessa: O Trauma Simbólico Central

O evento traumático central de nosso tempo é a quebra da promessa de que a adesão ao sistema (trabalhar duro, consumir, competir) garantiria um futuro melhor para todos. O aumento da precarização, a estagnação dos salários para a maioria e a crescente ansiedade em relação ao futuro transformaram essa promessa em uma ficção. Este não é apenas um evento econômico, mas um colapso simbólico. É a quebra do contrato social que mantinha a coesão, lançando a coletividade em uma crise de fé em suas próprias fundações.

2.2. A Evaporação da Confiança e a Desintegração do Vínculo

A consequência direta da promessa quebrada é a evaporação da confiança: confiança nas instituições (governos, mídia, ciência), confiança nos especialistas e, o mais grave, confiança nos outros. Essa corrosão generalizada leva à desintegração do laço social. A sociedade se fragmenta, se atomiza. O cinismo se torna a postura dominante, e a lógica que impera é a do “salve-se quem puder”. Deixamos de nos ver como parte de um projeto coletivo para nos vermos como indivíduos isolados em uma luta pela sobrevivência.

2.3. Os Novos Sintomas Sociais: Ressentimento, Conspiração e Populismo

É nesse vácuo de sentido, de confiança e de laço social que emergem os novos sintomas sociais de nossa época. O ressentimento, a adesão a teorias conspiratórias e a ascensão de discursos extremistas e populistas não são fenômenos políticos isolados; são respostas patológicas a uma desorientação coletiva profunda.

Em uma sociedade estilhaçada, essas ideologias oferecem, de forma destrutiva, aquilo que foi perdido: um sentido (ainda que paranoico), uma coesão (baseada no ódio a um inimigo comum) e uma promessa de restauração de uma ordem perdida. São tentativas desesperadas de dar nome e forma a uma angústia difusa, de encontrar um culpado para o mal-estar. A psicanálise, aqui, nos permite ver esses fenômenos não apenas em sua dimensão política, mas como sintomas da dor de uma sociedade que perdeu sua bússola.

Conclusão: Do Vício à Consciência

A jornada por estes dois capítulos nos leva a um diagnóstico sombrio, mas necessário. A febre do crescimento infinito (Cap. 15) é uma defesa maníaca contra o vazio. Quando essa defesa falha, quando a promessa se quebra (Cap. 16), a energia maníaca não se transforma em uma elaboração saudável, mas se converte em um delírio paranoico e fragmentado. A sociedade viciada em crescimento, ao entrar em abstinência, torna-se uma sociedade ressentida e desorientada.

A tarefa da psicanálise, diante desse quadro, não é a de oferecer um novo modelo econômico, mas a de insistir no diagnóstico das fantasias irracionais que nos impedem de encarar a realidade: nossa finitude, nossos limites, nossa interdependência. Ao desmascarar a patologia do crescimento e ao nomear os sintomas da desintegração social, a escuta analítica nos oferece a única ferramenta capaz de nos tirar da compulsão e do delírio: a consciência crítica. É a partir dela que podemos, talvez, começar a abandonar a busca por um progresso infinito e iniciar a difícil tarefa de reconstruir um laço social baseado não em uma promessa mágica, mas no reconhecimento de nossa vulnerabilidade compartilhada.

Deixe um comentário