Psicanálise e Prosperidade: A Utopia Tecnológica e o Reverso Sombrio da Performance

Resumo

Este artigo investiga os capítulos 11 e 12 do curso “Psicanálise e Prosperidade”, explorando a promessa utópica do neoliberalismo e suas consequências violentas. A primeira seção, baseada no Capítulo 11, “A Utopia Tecnológica e a Negação da Falta”, analisa a aliança entre a tecnociência e o mercado, que promete um futuro de gestão total e eficiente da existência, livre de problemas. Demonstramos, a partir da psicanálise, que essa utopia se baseia em uma negação radical da falta, a condição estruturante do desejo humano, ameaçando assim a nossa própria humanidade. Concluímos que a lógica final deste projeto é a declaração da obsolescência do humano e a fantasia transumanista de nos tornarmos máquinas de performance. A segunda seção, a partir do Capítulo 12, “O Reverso da Biopolítica”, investiga o lado sombrio desse ideal. Introduzimos o conceito de “reverso da biopolítica” como a administração dos “resíduos” humanos — os sujeitos considerados ineficientes, improdutivos e inadaptados. Argumentamos que a existência desses segregados expõe a ficção da prosperidade para todos. Por fim, analisamos os novos sintomas (pânico, compulsões inclassificáveis) não como patologias individuais, mas como o testemunho do “Real” que o sistema tentou excluir.

Palavras-chave: Psicanálise, Utopia Tecnológica, Transumanismo, Falta, Desejo, Biopolítica, Segregação, Sintoma, Neoliberalismo.

Introdução: A Promessa e sua Sombra

Nossa jornada pela crítica psicanalítica da prosperidade nos leva agora ao seu ápice e ao seu abismo. Se os capítulos anteriores desconstruíram a formação do sujeito neoliberal e as armadilhas do desejo no consumo, os capítulos 11 e 12 nos confrontam com a promessa final do sistema e seu custo humano mais devastador. De um lado, a utopia de um futuro perfeito, onde a tecnologia, aliada ao mercado, resolverá todos os males da condição humana. De outro, a realidade sombria da segregação, a produção de “restos humanos” que são a prova viva da falência dessa mesma promessa.

Este artigo se propõe a ser um guia para essa análise dialética. No primeiro momento, exploraremos a sedutora e perigosa utopia tecnológica, mostrando como sua busca por uma vida sem falhas e sem dor se baseia em uma negação da “falta”, a própria condição que nos torna seres desejantes. Em seguida, adentraremos o reverso da biopolítica, o lado oculto da performance, para compreender como um sistema obcecado pela otimização necessariamente produz resíduos, e como o sofrimento dos sujeitos “descartáveis” gera os novos e enigmáticos sintomas de nossa época. Preparem-se para um mergulho na promessa e em sua inseparável sombra.

Capítulo 11: A Utopia Tecnológica e a Negação Radical da Falta

O discurso da prosperidade neoliberal, em sua manifestação mais extrema, culmina em uma promessa de natureza quase religiosa: a de que a tecnologia, guiada pela lógica do mercado, nos levará a um futuro perfeito, a uma existência totalmente gerenciada, eficiente e, em última instância, livre do sofrimento.

1.1. A Aliança Tecnocientífica-Mercadológica: A Gestão Total da Vida

A análise aponta para uma fusão poderosa entre a tecnociência, que oferece os meios técnicos para intervir e “melhorar” a vida, e o ultraliberalismo, que fornece a lógica de mercado como princípio organizador universal. O objetivo comum dessa aliança é a gestão total e eficiente da existência. A promessa é a de um futuro onde todos os problemas humanos — doenças, envelhecimento, infelicidade, e até a morte — serão tecnologicamente “resolvidos”. A vida, nesse projeto, deixa de ser uma jornada de mistério e contingência para se tornar um conjunto de problemas a serem otimizados por soluções técnicas. A questão da bioética se torna central: quem define o que é um “problema” a ser resolvido pela tecnologia? E o que perdemos quando tudo se torna uma questão de eficiência?

1.2. A Ameaça ao Desejo: A Negação Psicanalítica da Falta

O núcleo da crítica psicanalítica a essa utopia é que ela se baseia em uma negação radical da falta. Para a psicanálise, não somos seres de plenitude, mas seres de falta. É porque nos falta algo que desejamos, que amamos, que criamos, que nos movimentamos. A falta, a incompletude, não é um defeito a ser consertado; é a condição estruturante de nossa humanidade.

Ao prometer um mundo de plenitude total, sem falhas, sem dor e sem limites, o projeto tecnológico ameaça eliminar o próprio motor do desejo. Um sujeito completo, satisfeito em todas as suas dimensões, seria um sujeito morto psiquicamente, um ser sem anseios e sem movimento. A utopia de um mundo sem falta é, paradoxalmente, a utopia de um mundo sem desejo. A pergunta que se impõe é de ordem filosófica e existencial: se não nos faltasse nada, ainda teríamos motivos para criar, sonhar ou amar?

1.3. A Obsolescência do Humano: O Projeto Transumanista como Fantasia Final

O ponto de fuga lógico dessa utopia é a declaração de que o ser humano, em sua condição natural — falha, finita, vulnerável e contraditória —, é obsoleto. Se o objetivo é a performance perfeita, e o humano é, por definição, imperfeito, então o humano precisa ser superado.

O projeto transumanista, com suas fantasias de “melhoramento” genético, integração homem-máquina e upload de consciência, revela a fantasia final dessa lógica: a de apagar o que somos para nos tornarmos máquinas de performance perfeitas, imortais e eficientes. A cultura dos clones, a busca pela imortalidade digital, tudo isso aponta para um profundo horror à condição humana. A tecnologia não deve mais apenas nos servir, mas nos “consertar”, nos “superar”. A questão que nos confronta é, portanto, a mais radical de todas: até que ponto a tecnologia deve “consertar” aquilo que, em nossa fragilidade, nos torna humanos?

Capítulo 12: O Reverso da Biopolítica – Segregação e Novos Sintomas

A busca por um mundo perfeito e otimizado tem um lado sombrio e necessário: a gestão e a exclusão de tudo aquilo que é considerado imperfeito e ineficiente. Este é o “reverso da biopolítica”.

2.1. A Lógica do Resíduo: O Lado Sombrio da Performance

O conceito de biopolítica, de Foucault, descreve a forma como o poder moderno administra a vida para torná-la mais produtiva e eficiente. A psicanálise contemporânea introduz o conceito de seu reverso: a administração daquilo que o sistema de performance produz como resíduo.

Toda lógica de otimização, por definição, cria sobras, restos, elementos que não se encaixam no ideal. O “reverso da biopolítica” é, portanto, a gestão dos corpos, dos sujeitos e dos gozos que escapam à norma da produtividade. É a administração dos “improdutivos”, dos “ineficientes”, dos “inadaptados”. Ele revela a violência oculta por trás da fachada luminosa do ideal de prosperidade. A pergunta que desmascara essa lógica é: em uma sociedade obcecada por eficiência, qual é o lugar daquilo que não pode ser otimizado?

2.2. Os Segregados: A Prova Viva da Ficção da Prosperidade

A resposta é a segregação. O sistema gera “restos humanos”: os desempregados de longa duração, os doentes crônicos, os idosos não produtivos, os dependentes químicos, os “inadaptados” de toda ordem. Como o exemplo da “Cracolândia” em São Paulo ilustra de forma trágica, esses sujeitos são a prova viva de que a promessa de “prosperidade para todos” é uma ficção.

Eles são a manifestação concreta e visível da violência de uma norma que não deixa espaço para o que não performa. Sua existência expõe a verdade do sistema: ele não opera por inclusão, mas por uma lógica violenta de separação e segregação entre os “bem-sucedidos” e os “descartáveis”. A experiência de se sentir inadequado, que muitos de nós vivemos, é a internalização dessa lógica. A pergunta que nos conecta a esse sofrimento é: você já se sentiu descartável ou ineficiente por não atender a uma expectativa de performance?

2.3. Os Novos Sintomas: O Testemunho do Real Excluído

O sofrimento desses sujeitos segregados e excluídos não é silencioso. Ele produz os novos sintomas de nossa época. Patologias muitas vezes inclassificáveis pelos manuais tradicionais — crises de pânico avassaladoras, compulsões bizarras, depressões refratárias, dissociações profundas — emergem como a expressão desse mal-estar radical.

A leitura psicanalítica propõe que esses não sejam vistos apenas como patologias individuais, mas como o “testemunho do Real” que o sistema tentou excluir. São a manifestação da violência, o retorno, no corpo e na psique dos indivíduos, daquilo que a ordem simbólica da performance não consegue processar. São o grito daquilo que foi silenciado, a prova de que a tentativa de criar um mundo perfeito e sem falhas produz, como seu reverso necessário, um sofrimento ainda mais radical e desestruturante.

Conclusão: A Escolha entre a Utopia e o Cuidado

A jornada por estes dois capítulos nos deixa em uma encruzilhada. De um lado, a utopia tecnológica nos acena com a promessa de um mundo perfeito, sem falta, sem dor, sem finitude — um mundo, como a psicanálise nos mostra, sem desejo e, em última instância, sem humanidade. De outro, o reverso sombrio da biopolítica nos mostra o custo real dessa utopia: um mundo de segregação, de exclusão e de novos e terríveis sofrimentos para aqueles que são considerados “resíduos”.

A utopia da performance e a realidade da segregação não são opostas; são as duas faces da mesma moeda. A busca por um mundo de “puros” exige a criação de um mundo de “excluídos”. A tarefa da psicanálise, e de todo pensamento crítico, é a de se recusar a escolher entre esses dois polos. É a de desmascarar a violência contida na promessa de perfeição. E é, fundamentalmente, a de direcionar nossa escuta não para a sedução da utopia, mas para o testemunho incômodo dos sintomas dos segregados, pois é no sofrimento daquilo que foi excluído que a verdade de nosso tempo se manifesta com mais força.

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