Psicanálise e Prosperidade: O Corpo como Capital e a Promessa Impossível do Gozo Infinito

Resumo

Este artigo investiga o terceiro módulo do curso “Psicanálise e Prosperidade”, dissecando a relação entre o corpo, o desejo e a lógica neoliberal. A primeira seção, baseada no Capítulo 9, “O Corpo como Ativo de Performance”, analisa como o corpo transcendeu seu estatuto biológico para se tornar o principal capital do indivíduo, um projeto de otimização contínua (fitness, bem-estar, estética). Exploramos o sofrimento da imperfeição, onde a falibilidade natural do corpo (doença, envelhecimento) é vivida como uma falha moral de autogestão, gerando culpa e vergonha. Por fim, interpretamos o sintoma corporal (transtornos alimentares, pânico) como uma forma de resistência trágica do sujeito contra sua completa instrumentalização. A segunda seção, a partir do Capítulo 10, “A Promessa Capitalista do Gozo Infinito”, desconstrói o principal mecanismo psíquico do consumo. Argumentamos que o sistema opera não pela satisfação, mas pela promessa de um gozo absoluto e impossível. Demonstramos que a frustração é o verdadeiro motor do sistema, pois a satisfação breve garante que o sujeito seja relançado na busca por um novo objeto. Finalmente, analisamos como a produção de culpa (“o que há de errado comigo?”) fecha o ciclo, tornando o sujeito vulnerável à próxima promessa e garantindo sua adesão ao circuito do gozo.

Palavras-chave: Psicanálise, Corpo, Capital, Performance, Gozo, Consumo, Frustração, Neoliberalismo, Sintoma.

Introdução: O Palco do Desejo e a Engenharia da Insatisfação

Bem-vindos ao terceiro módulo de nossa jornada. Após termos desconstruído a formação do sujeito neoliberal e a tirania da performance, mergulhamos agora no palco central onde este drama se desenrola: o corpo. E investigaremos o combustível que move toda essa engrenagem: o circuito do gozo. Os capítulos 9 e 10 nos oferecem uma análise psicanalítica crucial sobre as duas faces da mesma moeda neoliberal. De um lado, a transformação de nossa carne, de nossa existência biológica, no principal ativo a ser performado e otimizado. De outro, a sofisticada engenharia psíquica que promete uma satisfação infinita através do consumo, mas que, na verdade, se estrutura sobre a nossa frustração perpétua.

Este artigo se propõe a ser um guia para essa dupla exploração. Primeiro, adentraremos a clínica do “corpo como capital”, analisando como essa lógica produz novas formas de sofrimento e como o próprio corpo, através do sintoma, tenta resistir a essa instrumentalização. Em seguida, desvelaremos o “segredo” do motor capitalista, mostrando como a promessa de um gozo impossível e a consequente produção de culpa nos mantêm presos em um ciclo de consumo e insatisfação. Esta é uma reflexão sobre o grande engodo, a grande mentira que sustenta o mercado de emoções e a nossa adesão a ele.

Capítulo 9: O Corpo como Capital – A Última Fronteira da Performance

No século XXI, a máxima “o corpo importa” ganhou um sentido radicalmente novo e problemático. Ele não importa apenas como morada do ser, mas como o principal ativo de performance do sujeito neoliberal.

1.1. Eu, um Ativo: A Transformação do Corpo em Commodity

O corpo, na contemporaneidade, transcendeu seu estatuto biológico para se tornar o capital fundamental do indivíduo. Ele é tratado como um projeto, uma empresa, um “corpo S.A.” que deve ser incessantemente investido e otimizado para maximizar seu valor nos mercados social, profissional e afetivo. O fitness, a indústria do bem-estar (wellness) e os procedimentos estéticos não são mais apenas questões de saúde ou vaidade; são estratégias de gestão de ativos.

Um corpo em forma, jovem e saudável torna-se um significante de disciplina, eficiência e sucesso — um currículo vivo. A lógica é implacável: se somos empreendedores de nós mesmos, nosso corpo é nosso principal produto. A questão que nos interpela é profunda: quando nosso corpo se torna um projeto de otimização constante, o que perdemos da espontaneidade, da singularidade e da simples aceitação de nossa forma de estar no mundo?

1.2. O Sofrimento da Imperfeição: A Falibilidade como Falha Moral

A consequência psíquica mais devastadora dessa transformação é a forma como passamos a lidar com a falibilidade natural do corpo. A doença, o envelhecimento, o cansaço, a “imperfeição” estética deixam de ser vistos como eventos naturais da existência para serem interpretados como uma falha pessoal e moral de autogestão.

Se o corpo é um projeto sob nossa total responsabilidade, então adoecer é sinal de “desleixo”. Envelhecer é sinal de “falta de cuidado”. Não ter o corpo “ideal” é sinal de “falta de força de vontade”. Essa lógica gera uma intensa culpa, vergonha e ansiedade. A culpa, como vimos, não é mais a da transgressão, mas a da performance insuficiente. A fragilidade, inerente à condição humana, torna-se uma fonte de vergonha a ser escondida. A pergunta que nos confronta com nossa própria finitude é: se a falibilidade do corpo é uma fonte de vergonha, como podemos nos reconectar com a naturalidade de nossa existência e a aceitação de nossas limitações?

1.3. O Grito do Real: O Sintoma Corporal como Resistência

O corpo, contudo, não é infinitamente dócil. A tese central e provocadora deste capítulo é que os sintomas corporais contemporâneos — como os transtornos alimentares, as crises de pânico, as síndromes de fadiga crônica — podem ser lidos como uma forma trágica de resistência.

São um protesto do Real do corpo contra sua completa instrumentalização e captura simbólica pela lógica da performance. É a maneira que o sujeito encontra para dizer “não” quando sua mente, já colonizada pelo imperativo do desempenho, não consegue mais fazê-lo. O sintoma é o grito de uma subjetividade que se recusa a ser reduzida a um objeto de performance, a um capital a ser otimizado. Ele reintroduz, pela via da dor, a verdade da falibilidade e do limite que a cultura tenta apagar. A escuta psicanalítica, portanto, nos desafia: quando o corpo grita o que a mente não pode expressar, estamos dispostos a ouvir e a desafiar as pressões que nos adoecem?

Capítulo 10: A Promessa Capitalista do Gozo Infinito – A Engenharia da Insatisfação

Se o capítulo 9 nos mostrou o palco da performance (o corpo), o capítulo 10 nos revela o roteiro que nos compele a atuar: a promessa de uma satisfação que, por ser impossível, nos mantém perpetuamente em movimento.

2.1. A Miragem da Felicidade Plena: A Fantasia como Isca do Consumo

O capitalismo contemporâneo opera por meio da promessa de um gozo infinito. A publicidade e o mercado não vendem meros produtos; vendem fantasias de completude. A mensagem implícita é sempre a mesma: a próxima compra, a próxima conquista, a próxima experiência irá, finalmente, preencher toda a sua falta e lhe entregar uma felicidade plena e permanente.

Esta promessa é a “isca” que captura nosso desejo. Ela se aproveita da nossa condição humana de seres faltantes e nos oferece a miragem de um objeto que irá, magicamente, resolver nosso mal-estar existencial. A pergunta que nos desvela essa fantasia é: você já se sentiu preso em um ciclo de consumo, buscando algo que nunca encontra?

2.2. O Fracasso Estrutural: A Frustração como Motor do Sistema

A análise psicanalítica demonstra que o fracasso dessa promessa não é um defeito acidental do sistema, mas a condição mesma de seu funcionamento. A satisfação proporcionada pelo consumo é, e precisa ser, estruturalmente breve e frustrante.

Se um produto realmente nos satisfizesse de forma plena e permanente, o ciclo de consumo terminaria ali. A genialidade perversa do sistema está em garantir que cada satisfação seja apenas parcial, deixando um resíduo de frustração que imediatamente nos relança na busca por um novo objeto que, desta vez sim, supostamente nos completará. A insatisfação, portanto, não é um efeito colateral a ser evitado; ela é o verdadeiro motor do desejo de consumir. O sistema não sobrevive apesar de nossa frustração; ele sobrevive por causa dela. A questão que nos torna analistas de nosso próprio comportamento é: você já percebeu como a satisfação de uma compra é, muitas vezes, fugaz e leva rapidamente à busca por algo novo?

2.3. A Internalização da Falha: O Ciclo da Culpa e da Nova Busca

O ciclo se completa com um último e crucial movimento psíquico: a produção de culpa. O sujeito, ao experimentar essa frustração crônica, não a interpreta como uma falha da promessa do sistema, mas como uma falha pessoal.

A pergunta que ele se faz, e que o sistema o encoraja a fazer, é: “O que há de errado comigo que nada me satisfaz?”. Ele se sente culpado por sua própria insatisfação, acreditando que não escolheu o produto certo, não se esforçou o suficiente, ou que há algo de fundamentalmente errado com ele. Essa culpa o torna ainda mais vulnerável à próxima promessa (“desta vez, com este novo produto, será diferente”), reiniciando o ciclo e garantindo sua adesão contínua ao circuito do gozo.

Conclusão: O Corpo e o Desejo no Divã

A jornada por estes dois capítulos nos revela uma engrenagem perversa e coesa. A lógica do “corpo como capital” (Cap. 9) nos compele a um projeto infinito de otimização para nos tornarmos dignos da felicidade que a “promessa do gozo infinito” (Cap. 10) nos oferece. Quando essa promessa inevitavelmente falha, não questionamos o sistema, mas culpamos nosso corpo imperfeito ou nossa “falha de gestão”, o que nos lança de volta na busca por mais otimização e mais consumo, em um ciclo vicioso que gera exaustão, ansiedade e um profundo sentimento de vazio.

A psicanálise, ao desvelar esse “engodo”, essa grande mentira, nos oferece uma possibilidade de saída. Ela nos convida a escutar o protesto do nosso corpo, a desconfiar das promessas de felicidade plena e a reconhecer a insatisfação não como uma falha a ser curada, mas como a própria condição do desejo. É um convite a abandonar a busca por um gozo impossível para, talvez, reencontrar um prazer mais modesto, mais real e, infinitamente, mais humano.

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