Psicanálise e Trabalho: A Violência Invisível – Liderança Tóxica, Projeção Psicótica e o Trauma do Assédio Moral

Resumo

Este artigo aprofunda a análise psicanalítica das violências interpessoais no ambiente de trabalho, focando em duas manifestações interligadas e devastadoras: a liderança tóxica e o assédio moral. A primeira seção explora a dinâmica inconsciente que sustenta a liderança tóxica, compreendendo o escritório como um palco para a transferência, onde a falha do líder em atuar como “container” (Bion) para as angústias grupais leva à projeção de elementos psicóticos e à criação de um bode expiatório. A segunda seção analisa o assédio moral como uma forma de traumatismo psíquico sistemático, que opera através da desqualificação e do silêncio para instalar um “super-ego selvagem” na vítima, levando-a a um doloroso “exílio interior”. Dialogando com a obra de John Grisham, a distopia de George Orwell e a arte de Goya, o artigo argumenta que estas não são meras questões de gestão, mas epidemias psíquicas que exigem uma escuta clínica apurada e uma resposta institucional e judicial para a reconstrução do sujeito e a reparação da dignidade.

Palavras-chave: Psicanálise, Liderança Tóxica, Assédio Moral, Transferência, Projeção, Bode Expiatório, Super-ego Selvagem, Trauma Psíquico.

Introdução: O Palco dos Dramas Invisíveis

Para além do esgotamento causado pela performance incessante e da angústia gerada pela precariedade, existe uma forma de sofrimento no trabalho que é mais direta, pessoal e, muitas vezes, mais silenciosa: a violência psicológica. Quando a organização se torna um campo de batalha, as feridas deixadas são invisíveis, mas profundas e duradouras. Este artigo mergulha nas dinâmicas inconscientes que transformam ambientes profissionais em laboratórios de adoecimento mental, focando em duas patologias que se retroalimentam: a liderança tóxica e o assédio moral.

Como a psicanálise nos ensina, o escritório nunca é um espaço neutro. É um palco onde se reencenam os dramas mais primitivos da psique humana. As relações com chefes e colegas são atravessadas por fantasias e expectativas inconscientes, um fenômeno que a psicanálise denomina transferência. Líderes são investidos de poder simbólico, tornando-se figuras parentais sobre as quais projetamos nossos anseios por proteção, reconhecimento e, também, nossos medos de abandono e aniquilação. É precisamente neste campo fértil que a violência invisível germina, transformando a promessa de cooperação em uma tragédia de manipulação e destruição psíquica.

Capítulo 7: Liderança Tóxica e a Projeção de Elementos Psicóticos

A liderança tóxica transcende a má gestão; é uma patologia coletiva que contamina o inconsciente grupal, bloqueia a criatividade e consome a energia psíquica na administração de conflitos destrutivos. Para compreendê-la, é preciso ir além do comportamento do líder e analisar a dinâmica que o grupo estabelece com ele.

A Sedução do Líder Carismático e a Dinâmica Transferencial

Muitas vezes, a liderança tóxica não se apresenta com a face do autoritarismo explícito, mas com o sorriso sedutor do carisma. A obra “A Firma” de John Grisham, citada na aula, é um exemplo literário perfeito de como líderes fascinantes podem obscurecer práticas predatórias. A equipe, capturada por uma promessa de sucesso e pertencimento, entra num estado de idealização. O líder é visto como onipotente e benevolente, e qualquer sinal de abuso é negado ou racionalizado. Essa fase de “lua de mel” é crucial, pois cria um vínculo de submissão patológica, uma armadilha onde a admiração profissional se dissolve em dependência emocional. Como nos alerta a aula, este fenômeno não se restringe a corporações, mas se infiltra em hospitais, clínicas e até mesmo nos nossos próprios ambientes de trabalho, onde a linha entre admiração e submissão se torna perigosamente tênue.

A Falha na Continência e a Criação do Bode Expiatório

A psicanálise de Wilfred Bion oferece um conceito fundamental para entender a função de um líder saudável: a capacidade de continência (containment). Um bom líder funciona como um “container” para as angústias, frustrações e incertezas do grupo. Ele acolhe esses “elementos psicóticos” – o medo do fracasso, a inveja, a rivalidade – e os devolve ao grupo de forma metabolizada, tolerável, permitindo que a equipe se concentre na tarefa.

A liderança tóxica é a negação radical dessa capacidade. O líder tóxico não apenas não contém as angústias, como as projeta de volta no grupo, amplificadas. Incapaz de lidar com o erro ou a diferença, o grupo, sob essa liderança, recorre a um mecanismo de defesa primitivo: a projeção em um bode expiatório. Um colega (ou, por vezes, o próprio líder) é inconscientemente escolhido para se tornar o depositário de toda a negatividade, incompetência e culpa que o grupo não consegue admitir em si mesmo. A energia da equipe, que deveria ser usada para resolver problemas, é inteiramente consumida na busca e punição de um culpado. A criatividade é bloqueada, a cooperação genuína se torna impossível e o ambiente se transforma num campo minado pela desconfiança.

Diálogo Cultural: O Saturno Corporativo que Devora Seus Filhos

A trilogia cultural proposta na aula oferece uma metáfora poderosa para essa dinâmica. A pintura “Saturno Devorando um de Seus Filhos” de Goya, o mito grego de Cronos e a “Sinfonia Fantástica” de Berlioz convergem para a imagem de uma força paterna que, para manter seu poder, aniquila sua própria criação. O líder tóxico opera como um Saturno corporativo: ele devora a alma, a autonomia e a vitalidade de seus subordinados para aplacar sua própria insegurança e sadismo. Reconhecer essa imagem por trás dos discursos de alta performance é o primeiro passo para desmascarar a patologia.

Capítulo 8: Assédio Moral – O Traumatismo e o Exílio Interior

Se a liderança tóxica é a patologia do grupo, o assédio moral é a violência sistemática que ela frequentemente engendra, direcionada a um indivíduo. É uma tortura psicológica que, sem deixar marcas físicas, corrói sistematicamente a dignidade humana e busca a desintegração do eu da vítima.

A Instalação de um “Super-ego Selvagem”

O mecanismo psíquico mais perverso do assédio moral é a sua internalização. Através de ataques repetitivos, humilhações, desqualificações e manipulações, o agressor consegue implantar uma voz cruel dentro da psique da vítima. Essa voz, um “super-ego selvagem”, assume a função do agressor, passando a atacar e culpar a própria vítima por dentro. Ela começa a acreditar que merece o tratamento que recebe, que é incompetente, que o erro é seu. É por isso que o assédio é tão devastador: a agressão externa se torna uma autoagressão contínua, uma ferida que sangra incessantemente nos divãs, disfarçada de depressão, ansiedade e síndrome do pânico.

O “Exílio Interior” e o Silêncio Cúmplice

A consequência dessa tortura interna é o “exílio interior”. A vítima se sente despersonalizada, alienada de si mesma. Fisicamente presente no escritório, sua mente está distante, em um exílio forçado para se proteger da dor. Ela se afasta de tudo e de todos, consumida por uma sensação de irrealidade e assombrada por sonhos recorrentes de perseguição, que são a tentativa do inconsciente de elaborar o trauma.

Este exílio é aprofundado pela omissão dos colegas. O silêncio daqueles que testemunham o assédio é uma segunda violência. Para a vítima, a falta de validação de sua dor confirma a narrativa do agressor de que ela está louca ou é a culpada. Para o grupo, o silêncio cria um trauma coletivo, onde o medo de ser a próxima vítima paralisa a todos e perpetua o ciclo de violência.

Diálogo Cultural: A Distopia de Orwell no Escritório

A atmosfera criada pelo assediador ecoa a distopia de “1984” de George Orwell. O conceito de “duplipensar” (acreditar em duas ideias contraditórias simultaneamente) e a vigilância constante espelham a tática cruel de confundir a vítima, de fazê-la duvidar da própria sanidade e de anular sua capacidade de resistência. O objetivo, tanto no romance quanto no assédio, é o mesmo: o controle total e a anulação do pensamento crítico e da subjetividade.

Conclusão: A Clínica da Violência e a Urgência da Reparação

A jornada por estas dinâmicas inconscientes nos mostra que a violência no trabalho é uma epidemia silenciosa com consequências reais e devastadoras. Lideranças tóxicas e assédio moral não são “problemas de RH”; são feridas abertas na alma coletiva.

O papel dos profissionais da saúde mental, como a aula nos convoca, é tirar as vendas dos olhos. A tarefa clínica transcende o tratamento dos sintomas isolados. É preciso reconhecer a violência, nomeá-la e ajudar a vítima a reconstruir o eu estilhaçado pelo trauma. Isso implica desfazer a identificação com o agressor, desmantelar o super-ego selvagem e resgatar a legitimidade da própria percepção e dor.

Contudo, a reparação não pode ser apenas individual. Ela exige uma intervenção institucional, com protocolos de atendimento claros, e uma reparação judicial que reconheça o dano e restaure a justiça. Chegou a hora de enxergar a violência que se esconde por

Deixe um comentário