Psicanálise e Trabalho: Da Imagem Ideal à Palavra Crítica – Resistências à Desumanização Empresarial

Resumo

Este artigo finaliza nossa investigação psicanalítica sobre o trabalho, focando no percurso da desalienação e nas clínicas da resistência. A primeira seção aborda a crise do “narcisismo de rendimento”, analisando como a busca incessante por uma imagem ideal de sucesso aprisiona a subjetividade, fundindo identidade com produtividade e gerando uma epidemia de burnout e vazio existencial. Discutimos a “queda da imagem ideal” como um ato de libertação psicanalítica, um passo fundamental para a redescoberta de um desejo autêntico, menos capturado pelo olhar do mercado. A segunda seção explora a “ideologia empresarial” e sua gestão por métricas como uma máquina de desumanização que promove uma nova “servidão voluntária”. Argumentamos que a “reintrodução da palavra” e do pensamento crítico emerge como o principal ato de resistência. Por fim, defendemos, a partir de Roland Goury, a urgência de alianças entre a psicanálise e movimentos de trabalhadores, transformando o sofrimento individual em ação coletiva e resgatando a dignidade humana onde a lógica algorítmica busca silenciá-la.

Palavras-chave: Psicanálise, Narcisismo de Rendimento, Desejo Autêntico, Ideologia Empresarial, Servidão Voluntária, Reintrodução da Palavra, Resistência.

Introdução: O Último Refúgio da Subjetividade

Ao longo de nosso percurso, diagnosticamos as múltiplas formas de sofrimento que o trabalho contemporâneo engendra: a exaustão do burnout, a violência da liderança tóxica, a angústia da precariedade. Chegamos, agora, ao ponto crucial de nossa investigação: a possibilidade de saída, de resistência, de desalienação. Se os capítulos anteriores mapearam a doença, os capítulos 9 e 10 nos apontam para a clínica da resistência, um caminho que se desdobra em dois movimentos essenciais e interligados.

O primeiro movimento é interno, subjetivo: a queda da imagem ideal. É o confronto com a prisão dourada do “narcisismo de rendimento”, a desidentificação com os avatares de sucesso que as telas digitais nos impõem. É um mergulho na própria vulnerabilidade para resgatar um desejo que seja verdadeiramente nosso. O segundo movimento é externo, coletivo e político: a reintrodução da palavra crítica. É a recusa ao silêncio imposto pela ideologia empresarial e sua gestão por métricas. É a transformação do sofrimento mudo em ação articulada, a criação de alianças que devolvam a voz e a dignidade àqueles que o sistema busca reduzir a códigos de barras. Este artigo explora essa jornada, do divã à praça pública, do colapso individual à insurgência coletiva.

Capítulo 9: A Queda da Imagem Ideal e o Resgate do Desejo Autêntico

Vivemos na era da performance. As telas digitais não são apenas janelas para o mundo; são espelhos que refletem um ideal de vida inatingível, onde o valor de um ser humano é medido por suas métricas de sucesso. É nesse contexto que prolifera a patologia central de nossa época: o narcisismo de rendimento.

O Narcisismo do Rendimento como Prisão Dourada

O narcisismo de rendimento é a fusão patológica entre identidade e produtividade. O sujeito se torna prisioneiro de uma imagem ideal de perfeição, onde seu valor está atrelado à performance e à exibição incessante de “troféus” — sejam eles conquistas profissionais, bens materiais ou engajamento nas redes sociais. Como a aula aponta, os consultórios transbordam com os sintomas mascarados de sucesso: jovens de 20 anos com burnout, ansiedade generalizada em executivos de alto funcionamento, uma depressão que se esconde atrás de currículos impecáveis.

O fenômeno de criadores de conteúdo que, no auge do sucesso, anunciam seu esgotamento e abandonam a carreira é um exemplo gritante. A performance incessante para manter a imagem ideal se revela insustentável, esvaziando o sujeito de qualquer sentido. Da mesma forma, a migração de profissionais de grandes corporações para projetos com mais propósito e menos remuneração, como observamos em Florianópolis e outras cidades após a pandemia, sinaliza uma profunda crise nesse modelo. A imagem ideal do sucesso corporativo, antes tão cobiçada, revela-se uma prisão dourada que, por trás do brilho, esconde um profundo sofrimento.

O Ato Libertador da Queda

A análise psicanalítica, nesse contexto, não busca fortalecer o sujeito para que ele se adapte melhor à performance, mas sim possibilitar a queda da imagem ideal. Este é um ato terapêutico e libertador. Consiste em ajudar o sujeito a se desidentificar dos ideais de produtividade, a confrontar sua própria vulnerabilidade e a aceitar que seu valor não reside nas métricas do mercado. É um processo doloroso, pois implica o luto por uma fantasia de onipotência, mas é o único caminho para a recuperação da vitalidade. Como destruir essa ilusão, como nos provoca a aula, torna-se a tarefa central da clínica.

O diálogo cultural com o mito de Narciso, imortalizado na pintura de Waterhouse, nos lembra da paralisia e da morte que advêm de se apaixonar pela própria imagem refletida. A clínica da resistência busca quebrar esse espelho, permitindo que o sujeito se volte novamente para o mundo e para os outros, não como palco para sua performance, mas como campo para a existência.

Em Busca de um Desejo Menos Aprisionado

Com a queda da imagem ideal, abre-se um espaço. É o espaço para a emergência de um desejo autêntico, um desejo menos aprisionado ao olhar e à validação do Outro (o mercado, a sociedade, o algoritmo). Não se trata de abandonar toda e qualquer ambição, mas de questionar sua origem. Este desejo vem de mim ou da imagem que acredito que preciso projetar? Encontrar um sentido de valor que transcenda a performance externa é o objetivo final. É a possibilidade de alinhar a vida a valores que não sejam apenas a produtividade e o lucro, mas a criatividade, o afeto, a solidariedade e o tempo para ser.

Capítulo 10: A Ideologia Empresarial e a Reintrodução da Palavra

A prisão do narcisismo de rendimento não é uma falha individual. Ela é ativamente construída e mantida por uma poderosa ideologia empresarial que opera silenciosamente nos escritórios, transformando, como metaforizado na aula, “seres humanos em planilhas de Excel”.

A Gestão por Métricas e a Nova Servidão Voluntária

A ideologia empresarial contemporânea promove uma desumanização sistemática através da gestão por métricas. Sob a nova “razão gerencial”, o que não pode ser medido, simplesmente não existe. A subjetividade, a criatividade, o sofrimento, a dignidade — tudo isso é expurgado da equação. O trabalhador é reduzido a um código de barras, um conjunto de KPIs (Key Performance Indicators), capturado e aprisionado em uma lógica algorítmica.

Esta captura da subjetividade gera uma profunda perda de sentido e reinstaura, de forma high-tech, a “servidão voluntária” descrita por Étienne de La Boétie no século XVI. O indivíduo, seduzido pela cultura organizacional e pelo medo do desemprego, consente com sua própria desumanização. A impotência sentida diante desses sistemas impessoais e absurdos, magistralmente ilustrada em “O Processo” de Kafka, torna-se a experiência cotidiana de milhões.

A Palavra e o Pensamento Crítico como Ato de Resistência

Contra o silêncio imposto por essa máquina de moer almas, o ato mais fundamental de resistência é a reintrodução da palavra e do pensamento crítico. Questionar, nomear o sofrimento, denunciar a violência, articular uma crítica ao sistema — tudo isso é um ato que resgata a subjetividade onde a lógica da métrica busca aniquilá-la.

O movimento da “Grande Demissão” (Great Resignation) pode ser lido, psicanaliticamente, como um ato coletivo de reintrodução da palavra. Não é apenas uma mudança de emprego; é uma recusa em massa à ideologia empresarial, um “não” sonoro à servidão voluntária. É a manifestação de que milhões de trabalhadores começaram a questionar a perda de sentido e a reivindicar seu direito a uma vida que não seja inteiramente consumida pelo trabalho.

Alianças para a Ação: O Lugar Político da Psicanálise

A palavra, para ganhar força, precisa se tornar coletiva. Aqui, a proposta de Roland Goury, destacada na aula, torna-se urgente: a necessidade de alianças entre psicanalistas e sindicatos ou outros movimentos de trabalhadores. A psicanálise não pode permanecer ausente dessa batalha, confinada aos consultórios, tratando as vítimas de um “genocídio psíquico em escala industrial” sem confrontar a máquina que o produz.

Ao se aliar a essas instâncias, a psicanálise ajuda a dar musculatura à crítica. Ela oferece ferramentas para nomear o sofrimento que a gestão tenta silenciar, para entender as dinâmicas inconscientes de submissão e para transformar a dor individual em ação política coletiva. A figura mítica de Cassandra, condenada a proferir verdades que ninguém ouve, como retratado por Evelyn de Morgan, é a metáfora perfeita para a perda da palavra crítica no ambiente corporativo. A aliança proposta busca quebrar essa maldição, garantindo que a verdade do sofrimento seja, enfim, ouvida e que gere consequências.

Conclusão: Do Divã à Ação Coletiva

A jornada do sofrimento no trabalho contemporâneo nos leva, ao final, a uma encruzilhada. De um lado, o caminho da adaptação, da medicalização, do silenciamento do sintoma para que a engrenagem continue girando. De outro, um caminho mais árduo, mas infinitamente mais vital: o caminho da resistência.

Este caminho, como vimos, começa com um movimento interno de desconstrução — a coragem de deixar cair a máscara da performance e buscar um desejo mais autêntico. Mas ele não pode parar aí. Ele se completa no movimento externo de se unir a outros, de reintroduzir a palavra crítica no espaço público e de lutar coletivamente por um trabalho que não exija o sacrifício da nossa dignidade e da nossa alma. A psicanálise, fiel à sua vocação de escutar o sofrimento humano

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