Psicanálise e Trabalho: Gozo, Precarização e a Corrosão do Futuro na Era Digital

Resumo

Este artigo aprofunda a análise psicanalítica das patologias laborais contemporâneas, focando em duas dinâmicas centrais: o imperativo de eficiência como um mandato para um gozo excessivo e a ascensão do sujeito precário na “Gig Economy”. A primeira parte investiga como a sociedade da performance transforma o trabalho numa busca compulsiva por uma satisfação paradoxal e masoquista — o “plus-de-gozar” capitalista — gerando a “neurose de desempenho” e sintomas como a fobia de tela, que funcionam como um grito de basta do psiquismo. A segunda parte explora a condição do trabalhador precarizado, reduzido a um “avatar descartável” e gerenciado por algoritmos, analisando como essa realidade corrói a capacidade psíquica de elaborar um futuro, aprisionando o sujeito numa ansiedade de subsistência diária. Dialogando com conceitos lacanianos, a sociologia de Bauman e obras de Kafka e Bruegel, o artigo argumenta que o sofrimento atual no trabalho não é um conjunto de falhas individuais, mas um sintoma estrutural de um sistema que vende uma falsa autonomia para entregar uma nova forma de escravidão digital, exigindo uma escuta clínica que reconheça as cicatrizes de uma época.

Palavras-chave: Psicanálise, Gozo, Trabalho Digital, Sujeito Precário, Gig Economy, Corrosão do Futuro, Neurose de Desempenho.

Introdução: Dos Tempos Modernos à Metamorfose Digital

A imagem de Carlitos em “Tempos Modernos”, engolido pelas engrenagens de uma linha de produção industrial, tornou-se o emblema do sofrimento operário no século XX. Hoje, um novo maquinário, mais sutil e invasivo, engole a subjetividade contemporânea. Não são mais as engrenagens de metal, mas as notificações incessantes, as metas inalcançáveis e os algoritmos invisíveis que atorcem o trabalhador. Os consultórios de saúde mental, como nos alerta a aula, estão “abarrotados de Carlitos contemporâneos”, mas o sofrimento deles assume novas e complexas formas.

Dando continuidade à análise sobre o burnout e o narcisismo da performance, este artigo mergulha em duas das mais potentes forças que moldam o mal-estar no trabalho atual: o imperativo do gozo e a institucionalização da precariedade. Primeiro, investigaremos como a obrigação de resultados se converteu numa exigência de gozo — uma satisfação excessiva e dolorosa que nos leva à exaustão. Em seguida, analisaremos a figura do “sujeito precário”, o trabalhador da “Gig Economy” que, na metamorfose de uma promessa de liberdade, acorda transformado não num inseto, como o Gregor Samsa de Kafka, mas num “número descartável de uma planilha empresarial”, despojado de sua capacidade de sonhar com o futuro.

Capítulo 3: O Imperativo do Gozo e a Neurose de Desempenho

A sociedade contemporânea é dominada por uma religião secular: a produtividade. Cada gesto, cada pensamento, é convocado a se converter em resultado, em métrica, em performance. Esta “obrigação de resultados” transcendeu a esfera do dever e se tornou um imperativo super-egoico que nos comanda a gozar do nosso próprio desempenho, numa espiral que inevitavelmente conduz ao adoecimento.

O “Plus-de-gozar” Capitalista: A Satisfação que Jamais se Cumpre

A psicanálise lacaniana estabelece uma distinção crucial entre prazer e gozo. O prazer opera sob o princípio do equilíbrio, da homeostase; ele busca a satisfação e encontra um limite. O gozo (jouissance), por sua vez, é o excesso, a transgressão desse limite. É uma satisfação paradoxal, pois está intrinsecamente ligada à dor, ao sofrimento e à repetição compulsiva.

O conceito de “plus-de-gozar” (mais-de-gozar), cunhado por Lacan, descreve perfeitamente a lógica do consumo e, hoje, do trabalho. O sistema capitalista não promete o prazer (a satisfação de uma necessidade), mas sim a promessa de um “sempre mais”, uma satisfação adicional e insaciável que, por definição, jamais se cumpre. Essa lógica nos aprisiona numa busca compulsiva e doentia. No trabalho, isso se manifesta na sensação de que, mesmo após alcançar todas as metas, um vazio persiste, empurrando-nos para a próxima meta, o próximo projeto, numa busca incessante que devora nossa subjetividade. A pergunta que ecoa nos consultórios, “Por que, mesmo conquistando tudo, ainda me sinto no vazio?”, é a expressão exata desse engodo.

O Sintoma como Grito e a Resistência Simbólica

Quando o psiquismo é submetido a um excesso de gozo que não consegue mais processar, ele se defende. Os sintomas contemporâneos — a “fobia de tela”, as crises de pânico antes de abrir o notebook, o burnout — não são sinais de fraqueza. São um grito de basta. São atos de um inconsciente que tenta, desesperadamente, impor o limite que o sujeito, capturado pela “neurose de desempenho”, não consegue estabelecer por si mesmo. O corpo, em sua sabedoria, se recusa a continuar a alimentar a máquina.

Nesse contexto, fenômenos sociais como o “Quiet Quitting” (demissão silenciosa) podem ser lidos como um ato simbólico de resistência. A recusa do trabalhador em ir “além do que é exigido” é uma tentativa de barrar o gozo masoquista na performance, de reintroduzir um limite e proteger a saúde mental. Da mesma forma, a viralização de vídeos no TikTok sobre a cultura do burnout, onde jovens expõem sua exaustão, funciona como uma elaboração coletiva. Eles se tornam porta-vozes que manifestam em conteúdo digital o excesso de gozo que não cabe mais no corpo individual, denunciando a patologia de um sistema.

Diálogo Cultural: O Destino de Prometeu e Beethoven

A condição do trabalhador moderno, acorrentado ao imperativo da eficiência, encontra ecos profundos na cultura. A pintura “O Suplício de Prometeu” retrata a condenação a um sofrimento eterno e repetitivo, análogo ao ciclo de metas que se renovam infinitamente. A Sinfonia Nº 5 de Beethoven, a “Sinfonia do Destino”, com seu motivo rítmico implacável e persistente, pode ser ouvida como a trilha sonora desse imperativo que bate à nossa porta, nos impulsionando sem cessar rumo ao esgotamento. A tarefa da psicanálise, como apontado na aula, é ajudar a transformar essa neurose de desempenho em atos simbólicos de limite, permitindo que o sujeito se re-aproprie de sua vida.

Capítulo 4: O Sujeito Precário e a Corrosão do Futuro

Se o imperativo do gozo descreve a qualidade do sofrimento, a precarização descreve a condição material e existencial que o sustenta. A ascensão da “Gig Economy”, na “sociedade líquida” de Zygmunt Bauman, promoveu uma profunda fragilização dos vínculos, disfarçada de modernidade e flexibilidade.

A Metamorfose: De Trabalhador a Avatar Descartável

A promessa da Gig Economy era a de autonomia: “seja seu próprio chefe”. No entanto, como a aula aponta, essa promessa revelou-se uma armadilha que transforma o smartphone numa “corrente invisível”. O trabalhador não dialoga mais com um patrão humano, mas com um algoritmo impessoal que o gerencia, avalia e, a qualquer momento, pode desconectá-lo. Ele se torna um “avatar descartável”, um sujeito fragilizado, sem garantias, vivendo numa insegurança diária.

A metáfora da “Metamorfose” de Kafka é assustadoramente atual. Gregor Samsa acorda um dia transformado num inseto monstruoso, tornando-se inútil para sua família e para o sistema produtivo. O trabalhador de aplicativo vive sob a ameaça constante dessa mesma transformação: um acidente, uma doença, uma avaliação ruim ou uma simples mudança no algoritmo podem torná-lo instantaneamente obsoleto, descartável. Essa realidade produz uma ansiedade de subsistência que consome toda a energia psíquica.

A Corrosão da Capacidade de Elaborar o Futuro

A consequência psíquica mais devastadora dessa condição é o esvaziamento do futuro. A capacidade humana de projetar, de planejar, de sonhar com o porvir (aposentadoria, compra de uma casa, segurança na saúde) depende de uma estabilidade mínima no presente. O sujeito precário é mantido em um estado de alerta constante, focado exclusivamente na sobrevivência do dia. O futuro deixa de ser um horizonte de possibilidades e se torna uma fonte de angústia e ameaça. A energia psíquica, que poderia ser investida na elaboração de projetos de vida, é inteiramente gasta no cálculo ansioso da próxima corrida, da próxima entrega, da próxima diária.

As manifestações e greves de entregadores na Argentina ou a realidade dos motoristas de aplicativo no Brasil são, portanto, muito mais do que reivindicações trabalhistas. São um protesto existencial contra a desumanização, uma busca pela restauração da dignidade e, fundamentalmente, uma luta pelo direito de ter um futuro.

Diálogo Cultural: A Queda de Ícaro

A trilogia cultural proposta para este capítulo é potente. A mitologia grega de Ícaro, que, fascinado pela liberdade de voar, se aproxima demais do sol e cai tragicamente no mar, espelha a trajetória do sujeito precário. A promessa de autonomia (as asas) se transforma numa armadilha cruel que leva à queda. A pintura de Bruegel sobre este mito, “A Queda de Ícaro”, é ainda mais contundente: enquanto Ícaro se afoga, o mundo ao redor continua indiferente, com o lavrador arando seu campo e os navios seguindo seu curso. A tragédia do indivíduo precarizado é, muitas vezes, invisível para uma sociedade que naturalizou essa forma de exploração. O “Adágio para Cordas” de Samuel Barber, com sua melancolia profunda, serve como réquiem para essa capacidade de futuro que morre silenciosamente.

Conclusão: Acordar para a Epidemia Psíquica

Ao entrelaçar a análise do gozo compulsivo com a da precarização existencial, emerge um retrato sombrio do trabalho contemporâneo. De um lado, aqueles com vínculos formais são empurrados para um ciclo de exaustão por um super-ego corporativo que exige uma performance infinita. De outro, uma massa crescente de trabalhadores é expulsa de qualquer estabilidade, condenada a uma vida de insegurança administrada por algoritmos. Ambas as condições, embora distintas, produzem um sofrimento profundo e corroem a subjetividade.

A clínica psicanalítica é convocada a uma tarefa urgente: reconhecer que a ansiedade, a depressão e o pânico que batem à sua porta não são apenas questões intrapsíquicas. São, como a aula enfatiza, uma “epidemia psíquica”, as “cicatrizes de uma época”. É preciso parar de tratar apenas os sintomas isolados e começar a enxergar “a máquina produtivista que os fabrica em série”. Escutar o sofrimento do sujeito contemporâneo exige reconhecer a violência de um sistema que vendeu liberdade e entregou uma escravidão digital, que prometeu o céu da autonomia e nos fez cair no mar da indiferença. É hora de, como profissionais e como sociedade, acordar para essa realidade, ou continuaremos a ser cúmplices de uma indiferença que mata.

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