Introdução: O Sonho de Rousseau e o Desejo que Resiste ao Tempo
Nossa reflexão se inicia em uma selva onírica, pintada por Henri Rousseau em sua obra-prima, “O Sonho” (1910). Uma mulher nua repousa serenamente em um sofá vermelho, imersa em uma paisagem exótica e luxuriante, cercada por animais selvagens e a melodia de um músico encantador. A cena, uma fusão de erotismo, fantasia e sonho, nos apresenta o desejo como fábula: uma experiência despida de culpa, serena em sua nudez, legítima em sua fantasia. Este quadro é o nosso portal para discutir a sexualidade na maturidade, não como um tabu ou um fim, mas como um território de desejo que, como na pintura de Rousseau, tem o direito de existir em sua própria e rica paisagem.
A partir desta provocação, estabelecemos nossa ideia principal, um mantra que deve nos guiar: a sexualidade jamais acaba. Enquanto respiramos, ela nos movimenta. Este artigo se propõe a desconstruir o preconceito do etarismo que insiste em silenciar essa força vital, investigando a genealogia da vergonha sexual e apontando caminhos para a reescritura de uma erótica autêntica e potente na maturidade.
1. A Genealogia da Vergonha: O Supereu Histórico e o Olhar do Outro
A psicanálise nos ensina que a vergonha sexual não é um sentimento inato; ela é uma herança, uma dívida contraída ao longo de nossa história emocional. A vergonha não nasce no corpo, mas no olhar do outro — seja o olhar religioso, o familiar ou o midiático — que julga, condena e, por fim, nos ensina a nos envergonharmos de nossos próprios impulsos. Como escreveu Anaïs Nin, a vergonha é, em essência, “uma mentira contada sobre nós, e que nós internalizamos como verdade”.
Esta construção simbólica é internalizada na forma de um Supereu histórico e social. É uma instância psíquica forjada por tabus, censuras veladas e olhares críticos que, desde a infância, nos ensinam o que é “permitido” e “proibido” sentir. Até mesmo a psicanálise clássica, como aponta a crítica de Harriet Kimball Wright, carregou em seu início uma lente falocêntrica que, por vezes, patologizou a feminilidade como falta, contribuindo para essa estrutura de culpa. A psicanálise do século XXI, no entanto, busca transformar a escuta: não para normalizar os sujeitos, mas para legitimar e reconhecer a autoridade de sua singularidade.
2. O Corpo Maduro como Território Erótico Legítimo
Desejar na maturidade é, portanto, um ato de resistência contra os estigmas do etarismo. Mais do que resistência, é um direito fundamental da natureza humana. Para isso, é preciso combater dois mitos profundamente enraizados:
- O Mito da Performance: A sociedade valoriza uma sexualidade performática, focada em padrões de potência e beleza juvenis. A maturidade nos convida a uma mudança radical de paradigma: do prazer como performance para o prazer como presença. Trata-se de uma escuta sensorial, de habitar o corpo com autenticidade, onde o prazer não é um objetivo a ser atingido, mas uma experiência a ser vivida no momento presente, em um corpo que carrega histórias, marcas e uma nova forma de sensibilidade.
- O Mito do Corpo Assexuado: O etarismo tenta nos convencer de que o corpo envelhecido não é um território erótico. A tarefa de ressignificação passa por um processo de “reabitar” o próprio corpo, desalojando os inquilinos indesejados (as vozes críticas, os preconceitos internalizados) que nos distanciaram de nós mesmos. Isso exige autorizações internas, um ato consciente de se dar permissão para sentir e desejar.
3. A Clínica e os Rituais de Reescrittura Erótica
A cura da vergonha sexual começa quando o impensável pode ser narrado sem punição. A clínica psicanalítica se oferece como este espaço seguro de reescrita, onde fantasias, traumas e desejos, há muito proibidos pelo discurso moral, podem finalmente encontrar voz. Falar do que se teme sentir já é metade do caminho.
Mas a reescritura não acontece apenas no divã. Rituais coletivos e sociais funcionam como poderosas re-inscrições do prazer no corpo. Festas Queer, práticas Kink ou mesmo encontros de nudez consciente funcionam como atos performáticos que “passam a limpo” a história da vergonha, escrevendo o prazer onde antes havia silêncio e repressão. São laboratórios para se experimentar uma ética interna do prazer, longe do olhar julgador do supereu social.
4. Estudo de Caso Cultural: Spring Awakening e a Fabricação da Vergonha
O musical “Spring Awakening” (O Despertar da Primavera) é uma ilustração visceral de como a vergonha é fabricada. A trama se passa na Alemanha do século XIX e expõe como o silêncio institucionalizado de pais, professores e religiosos que se recusam a nomear o desejo, transforma a curiosidade pulsional natural dos jovens em um afeto corrosivo.
- O Conflito Dramatizado: A canção “The Word of Your Body” expõe brilhantemente o dilema freudiano entre a pulsão e a norma, o êxtase do corpo e a interdição da palavra.
- A Música como Catarse: Números musicais como “Totally Fucked” funcionam como o equivalente a uma sessão de associação livre, permitindo que as emoções reprimidas encontrem uma via de expressão através do som e do gesto, proporcionando uma catarse simbólica.
- O Ponto de Virada: A personagem Wendla, ao exigir saber sobre seu corpo e o sexo, encarna a virada crucial. Ela não deseja meramente transgredir; ela deseja compreender. Esse movimento da ignorância para a busca de conhecimento é o primeiro passo para transformar a vergonha em potência criativa e poética, como celebrado na canção final, “The Song of Purple Summer”.
5. A Voz do Calado: Pornografia Ética como Contranarrativa
Em um mundo saturado por uma pornografia mainstream que frequentemente perpetua roteiros misóginos e de exploração, surge um movimento de resistência: a pornografia ética e feminista. Produtoras independentes desafiam o status quo ao priorizar:
- Transparência e Justiça: Contratos justos, bastidores transparentes e condições de trabalho dignas.
- Diversidade: Elencos com diversidade de corpos, etnias e idades.
- Direção e Foco no Prazer Mútuo: Narrativas que enfatizam a negociação prévia, o consentimento e, muitas vezes, uma direção feminina que subverte o olhar voyeurístico tradicional.
Iniciativas como XConfessions de Erika Lust, Four Chambers de Vex Ashley e documentários como Hot Girls Wanted: Turned On não apenas denunciam a precarização da indústria, mas mostram que é possível criar conteúdo erótico que seja ético, artístico e que contribua para uma visão mais saudável e igualitária da sexualidade.
Conclusão: A Sexualidade como Força Vital Inextinguível
Retornamos ao nosso ponto de partida: a sexualidade jamais acaba. Ela é uma força vital que nos mantém em movimento enquanto respiramos. A jornada na maturidade não é sobre o fim do desejo, mas sobre a sua ressignificação. Trata-se de um trabalho ativo e consciente de desmantelar a vergonha que nos foi imposta, de reivindicar o próprio corpo como um território erótico legítimo e de reescrever nossa história sexual, não mais como uma crônica de culpa, mas como a fábula potente e serena que, como no sonho de Rousseau, sempre tivemos o direito de viver.