O silêncio que permeia os traumas familiares muitas vezes se perpetua por gerações, criando padrões de comportamento que nem sempre compreendemos em nós mesmos. Essa é uma das principais premissas apresentadas pelo professor João Barros em sua aula inaugural sobre “Traumas Familiares na Perspectiva da Psicanálise”, um curso estruturado em dez videoaulas que promete um mergulho profundo nas águas da psicanálise aplicada às feridas emocionais de origem familiar.
O Professor e sua Proposta
João Barros, profissional com formação em filosofia, teologia e psicanálise, além de educação, apresenta uma proposta diferenciada: não apenas ensinar conceitos, mas provocar reflexões que permitam a cada participante ressignificar sua própria história. Como ele mesmo afirma na introdução do curso, sua função é “provocar reflexões, abrir caminhos e apontar pistas, como num jogo de quebra-cabeças”. O professor apresenta as peças, mas a imagem final será uma descoberta individual de cada participante.
Metodologia BIA: Um Caminho Personalizado
Uma das contribuições originais do curso é a metodologia denominada BIA (Básico, Intermediário e Avançado), reconhecendo que cada pessoa carrega uma história única de vida pessoal, profissional e existencial. Esta abordagem permite que os conteúdos sejam trabalhados em diferentes níveis de profundidade, respeitando a diversidade de experiências e bagagens dos participantes.
A metodologia reconhece que não somos iguais e cada um chega ao curso com diferentes níveis de conhecimento e experiências traumáticas. Alguns podem estar apenas começando a identificar padrões em suas vidas, enquanto outros já estão em processo de elaboração avançada de seus traumas.
A Estrutura dos Encontros
Cada encontro segue uma estrutura cuidadosamente planejada em quatro momentos:
- Introdução: Momento de problematização da questão a ser abordada, estabelecendo o terreno para as reflexões.
- Sensibilização: Etapa em que se busca “mexer” na estrutura de conhecimento e na história de vida dos participantes, criando abertura para novos entendimentos.
- Conceito: Fase dedicada ao resgate da objetividade, quando os fundamentos teóricos da psicanálise são apresentados.
- Diálogo com a Produção Cultural: Momento em que conceitos complexos são trabalhados através de manifestações culturais e artísticas, facilitando a compreensão e a internalização.
Esta estrutura permite uma abordagem tanto intelectual quanto emocional do tema, criando múltiplas vias de acesso ao conhecimento.
O Fundamento Central: Transformar Dor em Palavras
“A dor que não se transforma em palavras retorna em comportamentos” – este pensamento de Alice Miller, citado repetidamente durante a aula, constitui o eixo central do curso. Barros enfatiza que quando não conseguimos elaborar simbolicamente nossas experiências dolorosas, entramos em um ciclo de repetição comportamental, perpetuando padrões disfuncionais.
O professor explica que a incapacidade de simbolizar e mentalizar a dor leva a um processo repetitivo: “Repete porque não conseguiu elaborar. Quando eu consigo elaborar, simbolizar a minha dor por meio da escuta, então eu consigo ressignificar a minha história.”
Conteúdo Programático: Um Mapa para Compreensão dos Traumas
O curso está estruturado em dez videoaulas, cada uma abordando dois módulos complementares, totalizando vinte tópicos que cobrem desde a identificação e classificação dos traumas até técnicas de ressignificação e prevenção:
- A primeira videoaula aborda a diversidade dos traumas familiares e a perspectiva psicanalítica sobre eles
- A segunda explora o desenvolvimento psíquico, as raízes do trauma e os traumas de negligência e abandono
- A terceira se debruça sobre traumas de abuso (físico, emocional e sexual) e os traumas de perda e luto
- A quarta analisa a parentificação (quando crianças assumem responsabilidades adultas) e a transmissão intergeracional do trauma
- A quinta examina padrões repetitivos no inconsciente familiar e a formação do self
- A sexta estuda relacionamentos adultos como ecos do passado e os processos terapêuticos
- A sétima apresenta recursos e técnicas transformativas e a família como espaço de cura
- A oitava discute a prevenção e construção de famílias saudáveis e o papel da sociedade
- A nona foca na ressignificação das cicatrizes e traz estudos de casos
- A décima e última propõe projetos de intervenção e prevenção, finalizando com a ressignificação de cicatrizes abertas
A Violência Silenciosa e Normalizada
Um aspecto particularmente interessante abordado por Barros é o conceito de “violência sutil normatizada” – aquela que, de tanto ser vivenciada e testemunhada, torna-se invisível aos olhos de quem a sofre e de quem a pratica. O professor usa a analogia de um estrangeiro que, ao chegar ao Brasil, fica horrorizado com o trânsito caótico, mas depois de um ano já não percebe as infrações como anormais.
Da mesma forma, muitas dinâmicas familiares violentas tornam-se “normais” para seus membros, criando um véu de invisibilidade sobre o trauma. Este é um dos desafios centrais para o trabalho terapêutico: tornar visível o que foi normalizado e, consequentemente, silenciado.
Transmissão Intergeracional: Heranças Psíquicas
O curso dedica especial atenção à transmissão intergeracional dos traumas – como padrões comportamentais e feridas emocionais são transmitidos de avós para pais e de pais para filhos, muitas vezes sem consciência. Esta transmissão acontece tanto por meio de comportamentos explícitos quanto por silêncios e omissões carregados de significado.
Barros ressalta que muitos comportamentos padrões que não conseguimos explicar em nós mesmos podem ter origem em gerações anteriores, o que torna fundamental conhecer as histórias de nossos ancestrais para compreender nossos próprios padrões de comportamento.
Simbolização: A Ferramenta Central
Um dos conceitos mais importantes trabalhados no curso é o da simbolização – a capacidade de transformar experiências emocionais em representações mentais que possam ser processadas e integradas ao psiquismo. Esta habilidade, segundo Barros, é fundamental para a elaboração dos traumas.
Quando não conseguimos simbolizar adequadamente nossas experiências traumáticas, elas permanecem como “pontos cegos” em nossa psique, manifestando-se através de comportamentos repetitivos, sintomas físicos ou psicológicos, ou relações disfuncionais.
Para Quem é o Curso?
O professor enfatiza que o curso é destinado a todos que têm “paixão pela vida”, independentemente da história que viveram ou estão vivendo. No entanto, faz uma menção especial às mulheres grávidas, que estão em processo de geração de uma nova vida. A metáfora da gravidez é utilizada ao longo do curso para representar o processo de gestação de uma nova versão de si mesmo, “mais inteira, mais consciente”.
A abordagem é especialmente relevante para:
- Pessoas que sofrem com padrões repetitivos em suas vidas e relacionamentos
- Profissionais das áreas de saúde mental, educação e assistência social
- Indivíduos interessados em compreender suas próprias histórias familiares
- Pais e mães que desejam interromper ciclos de transmissão de traumas
- Qualquer pessoa interessada em autoconhecimento e desenvolvimento pessoal
Conclusão: Ressignificando Histórias
A proposta fundamental do curso é que, independentemente da altura da vida em que nos encontramos, sempre é possível ressignificar nossa história. Como afirma Barros: “Não importa em que altura da vida estejamos, se adolescentes, se adultos, se já no envelhecimento. Nós temos oportunidade de ressignificar a nossa história, para sermos pessoas melhores.”
O processo de ressignificação não elimina as cicatrizes, mas transforma seu significado e seu impacto em nossas vidas. Como sugere a metáfora do quebra-cabeças utilizada pelo professor, ao final do curso cada participante terá a oportunidade de montar “o último encaixe do quebra-cabeças” e construir “o enredo possível para uma nova história”.
A mensagem final é esperançosa: se a família foi o lugar do trauma, ela também pode ser o lugar da cura. E se a dor que não se transforma em palavras retorna em comportamentos, o inverso também é verdadeiro – ao dar voz à nossa dor, podemos finalmente libertar nossos comportamentos para novas possibilidades de ser e de viver.